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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Todos, ou quase todos, vão ganhar com a regulação das plataformas digitais

Tela de celular escrita fake news - Pedro França/Agência Senado
Tela de celular escrita fake news Imagem: Pedro França/Agência Senado

Colunista do UOL

04/05/2023 04h00

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Juro que não entendo os que são contra. Ou melhor, entendo com o fígado e com o bolso, mas não com a razão.

É verdade que quase toda regulação incomoda os entes regulados. Regras, normas, códigos de conduta, cartão de ponto, câmera de segurança... é muita burocracia, protestam aqueles que, naturalmente, prefeririam não se responsabilizar por nada disso. Prestação de contas, relatórios parciais, auditoria fiscal: um inferno! Tributos municipais, estaduais e federais, argh...

Agora, reclamam, vem esse pessoal querer impor regras para proteger os cidadãos da violência, do abuso econômico e das violações de direitos praticadas por parte de empresas e usuários da internet?

Ser livre, na acepção mais idiotizada do termo, significa fazer o que quer, sem dever nada a ninguém (a começar pelos impostos). Por que sustentar uma educação pública, um sistema público de saúde, políticas distributivas ou de habitação? M-E-R-I-T-O-C-R-A-C-I-A, defendem. Deveres a observar, direitos a garantir? Deus nos livre. "Minha mãe não me deixa fazer nada", choraminga o menino mimado, um tipo que nunca mais deve voltar a reger a nação.

Para os que confundem liberdade com impunidade, regulação virou sinônimo de censura ou autoritarismo — e alguns se transformam em completos imbecis ao ler ou ouvir a palavra regulação. "Vão me controlar, agora?", exaltam. Daí a tachar o governo de comunista e o PL das Fake News de fascista é um pulo.

Em geral, os que não concebem regulação como garantia de direitos, insistindo em compará-la a controle ou censura, são os mesmos que não veem nada de errado em forçar um beijo na balada, chamar um parlamentar de "caboclo" conferindo ao termo caráter de ofensa ou preterir uma candidata negra num processo de seleção a despeito de ser ela a mais bem qualificada para a função. "Minha empresa, minhas regras!", exigem, o leite com pera a escorrer pelo canto dos lábios.

Transitar pelo Congresso Nacional com o PL da Fake News na ordem do dia é se deparar com toda sorte de argumentos, sobretudo os menos ponderados. Algumas dezenas de parlamentares, integrantes da bancada da Bíblia, acusam o projeto de investir contra a liberdade religiosa. Oi? Outros decidiram orientar voto contra o projeto por entender que o governo está querendo "controlar" a internet, determinar o que pode e o que não pode ser publicado ou compartilhado.

Pergunto-me se algum deles chegou a abrir o substitutivo em pauta e se leu os artigos. O problema dessa gente é de cunho político, ético, econômico, mas, sobretudo, de interpretação de texto.

Na planície, a grita se dá em bases semelhantes. Segundo a lógica desses juristas de Facebook, acadêmicos de Twitter, especialistas de Instagram e demais internautas que reivindicam para si a prerrogativa de compor o tribunal das redes sociais, ninguém deveria cometer a sandice, o desplante, de querer mexer no regramento da internet, esse santuário da liberdade de expressão, tão plural e diverso, tão democrático e eficiente (contém ironia). Cada um que seja responsável pelo que faz e pague pelos seus erros, sugerem.

"Daqui a pouco vão me proibir de fazer piada com viado, preto, índio, puta, velho, gordo, macumbeiro", protestam aqueles que não podem ver pela frente o termo "regulação de conteúdo". "O mundo virou um lugar muito chato. Onde vamos parar?"

Os que chegaram agora ao debate sobre regulação de plataformas também costumam reclamar da pressa, como se fosse algo novo, que apenas agora tivesse entrado no radar dos legisladores e da sociedade. Cobram mais tempo de debate como se o projeto de lei em discussão não fosse de 2020 e os efeitos da desrregulação não fosse tão perverso e urgente. Talvez estejam em leilão, esses senhores, esperando que a turma do lobby seja mais incisiva, impossível afirmar.

Acusam as propostas de regulação — qualquer regulação — de violar a liberdade de expressão. E insistem que não precisamos de nada disso, que a internet e os meios de comunicação não devem ser regulados — como se já não houvesse uma regulação, inclusive de conteúdo, nas tantas leis que regem a comunicação social e a internet no Brasil. Temos muitas, aliás. Um decreto de 1983 estabeleceu um mínimo de 5% da programação diária das rádios e TVs para conteúdos noticiosos. Uma lei de 1996 vetou propaganda de cigarros e bebidas alcoólicas nas rádios e na TV, mais tarde estendido para a web.

Há ainda uma lei que garante direito de resposta gratuito e na mesma proporção da ofensa à pessoa ou instituição lesada. E outra que determina um percentual de produções nacionais, regionais e independentes no arco de filmes e séries disponibilizadas por canais a cabo e serviços por assinatura. Nossa miséria é que essas leis já não dão conta de organizar, gerir e legislar a complexidade de problemas e desafios que a evolução trouxe para esses setores, principalmente para a internet.

Hoje, mais do que nunca, precisamos atualizar a regulação que existe. E criar regras para o que nunca foi regulado. Atualizam-se as regras para a produção de presunto, como li recentemente, e não se mexe nesse barril de pólvora em que se converteu a rede mundial de computadores, a despeito de toda a desinformação e de toda violência contida e estimulada em suas entranhas.

"Mas regular empresas privadas?", fingem surpresa. "E a livre iniciativa?"

Oi? Empresas privadas não devem ser reguladas? Imagina se as empresas privadas não tivessem regras a cumprir e se não fossem sujeitas a fiscalização. Você se sentiria seguro para frequentar boates sem inspeção? Compraria um apartamento num prédio sem o "Habite-se"? Levaria o mozão ou a família para jantar num restaurante que tem fugido da fiscalização da Anvisa como diabo da cruz? Escolheria viajar no ônibus de uma empresa que não exige habilitação dos motoristas? Ora, me poupe.

"Mas, professor, então você é a favor da censura?"

Censura é, por definição, censura prévia. Depois de publicado, um conteúdo pode motivar ações judiciais e toda sorte de condenações por injúria, calúnia ou difamação, por exemplo. Qualquer conteúdo, desde que haja infração, dolo ou infortúnio. Não é censura exigir a retirada de um conteúdo já publicado que viola leis, como as que disseminam discurso de ódio. Faz sentido agarrar-se ao argumento da liberdade de expressão quando ameaças são feitas e alguém corre perigo?

Apologia de crime ou de criminoso, por exemplo, é crime previsto no Código Penal brasileiro desde dezembro de 1940. Por que toleramos que se faça apologia a genocidas e torturadores? Por que toleramos que as plataformas digitais mantenham esses conteúdos no ar?

A pergunta que se impõe é a seguinte: a quem interessa manter a internet com cara e DNA de uma terra sem lei? Os falsos testemunhos levantados sobre a vacina contra o coronavírus, a manipulação de informações às vésperas da eleição, os atentados golpistas de 8 de janeiro e os ataques às escolas nos meses de março e abril não foram suficientes para mostrar que o ideal liberalizante que coloca a liberdade de expressão acima de tudo não tem funcionado nem vai funcionar?

Justiça seja feita, tínhamos até recentemente uma das melhores legislações de internet do mundo. O Marco Civil da Internet, de 2014, hoje exibe os pés de galinha de um texto envelhecido, desatualizado, quase anacrônico.

Quase uma década depois, os desafios agora são outros. Que o adiamento da votação do PL das Fake Newsadiamento da votação do PL das Fake News na Câmara sirva para lapidá-lo, torná-lo mais justo e eficiente, e não para desmanchá-lo, rasgá-lo, alterar sua essência. Que volte, por exemplo, a agência reguladora, sem a qual todo esforço irá esbarrar na ausência de fiscalização e, por consequência, na impunidade, mas que se possa definir de antemão sua composição e as instâncias responsáveis pela escolha dos componentes — e que não seja, como de fato não será, um órgão à mercê do governo.

É preciso, acima de tudo, que a letra da lei seja clara e rigorosa, que coloque limites e exija medidas concretas por parte das big techs, e que não passe pano para elas, para o poder econômico ou para o poder político. Como ser leniente diante dos algoritmos, que impelem as redes a boicotar determinados conteúdos em benefício de outros e a distribuir sem transparência o que poderia ser feito de forma isonômica? Como ser leniente diante de grupos e fóruns que promovem a cultura do bullying e do terror, que estimulam suicídios, homicídios e atentados?

"Beleza, mas você começou o texto dizendo que todos vão ganhar com a regulação das plataformas digitais. O que raios as próprias plataformas vão ganhar com ela?"

Segurança jurídica. Para as plataformas, nada pode ser pior do que o limbo jurídico. Redes sociais, aplicativos de mensagens e canais de vídeo vêm sendo punidos com frequência, tirados do ar ou multados, em decisões deflagradas ou amparadas pelo Supremo Tribunal Federal. Cai o Telegram, cai o WhatsApp, cai o Twitter... Por vezes, essas sentenças parecem exageradas, ou injustas, o que também é resultado da ausência do direito positivado, de artigos e alíneas que explicitem a infração e as penas. Uma regulação minimizaria as surpresas advindas dessas investidas do poder judiciário.

Outra coisa: você já teve alguma postagem derrubada monocraticamente pelo Facebook ou pelo Instagram? Seu perfil já foi suspenso por violar "diretrizes da comunidade", sem que você saiba exatamente quais são essas diretrizes e sem que você tenha podido recorrer, se defender, argumentar? O limbo jurídico também viola os direitos do usuário.

Muitas vezes, ameaças, humilhações, assédio sexual ou moral, racismo, homofobia, misoginia, etarismo ou capacitismo parecem ser tolerados pelas mesmas plataformas que se apressam em apagar um seio despido ou uma obra de arte do século 19 com o argumento de conteúdo impróprio.

Para nosso desespero, a internet está cheia de páginas que enaltecem nazismo e tortura. E que estimulam a violência contra grupos sociais. As mesmas redes onde essas páginas são hospedadas e compartilhadas, alcançando milhões e, por vezes, monetizando o conteúdo, dizem não se responsabilizar por ele, o que tem bastado para se eximir de qualquer responsabilidade legal. Lavam-se as mãos, e a infração permanece.

Um bom começo, para essas redes, seria explicitar quem são os autores de cada página ou perfil. A Constituição Federal não diz, no artigo 5º, que é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato? Como lidar, então, com sites hospedados fora do Brasil e conteúdos publicados por IPs impossíveis de rastrear? Como e por que fazer vista grossa diante de canais que não tenham um responsável, com CPF ou CNPJ, e um endereço ao qual possa eventualmente ser remetida uma intimação ou ordem judicial?

Se há postagens com desinformações e incitação à violência, a quem atribui-las? E como permitir ao cidadão que se sinta lesado ou caluniado por determinado conteúdo — um cidadão que pode vir a ser você — mover uma ação contra quem o ofende se os próprios canais que veiculam aquela ofensa protegem a identidade e a origem dela, autorizando publicações anônimas já vetadas pela Constituição há quase 35 anos?

"Ah, mas a empresa não pode ser responsabilizada pelo que é publicado pelos usuários". Quem falou? Se o Código Penal brasileiro ou de qualquer outro país prevê a condenação do cúmplice, por que a tecnologia responsável por difundir e disseminar um crime não pode ser condenado por cumplicidade?

Um fósforo não faz nada sozinho. Há algo de muito errado numa sociedade que aceita responsabilizar o fósforo pelo incêndio e absolve a dinamite que viabilizou a explosão.

Desde o final de abril, o Google tem publicado editoriais periódicos com o intuito de convencer os internautas de que a aprovação do PL 2630/2020, ora em tramitação, deve piorar a qualidade da internet no Brasil e pode vir a inviabilizar a gratuidade do serviço de busca que a empresa oferece. Se o mecanismo de busca for impedido de listar e divulgar páginas com conteúdo falso ou que possa ser considerado discurso de ódio, dizem porta-vozes da empresa, será impossível arcar com os custos dessa verificação e com os custos das eventuais ações judiciais daí decorridas.

O bolso, adivinha, continua sendo o órgão mais importante do corpo humano. Sobretudo para o Google, uma empresa da holding norte-americana Alphabet, que é também dona do YouTube e que, em 2022, teve uma receita anual de 282,8 bilhões de dólares, o equivalente a R$ 1,4 trilhão, mais que o PIB de Portugal e da Nova Zelândia.

Por falar em receita, aprovar uma regulação das plataformas digitais é atender também à justa reivindicação de rateio dos recursos advindos dos anúncios. Vejamos.

Parte significativa do conteúdo publicado no Instagram, no Twitter e no Facebook são reportagens, vídeos, artigos, colunas ou comentários feitos originalmente por veículos de comunicação como UOL, Folha de S.Paulo, Globo, Revista Fórum, Brasil 247, Carta Capital, Quebrando o Tabu ou Brasil Paralelo, entre muitos outros. Esses conteúdos são colocados nas redes sociais e, muitas vezes, multiplicam seu alcance e sua repercussão, com milhares de compartilhamentos. A empresa que anuncia no Facebook, no Google ou no YouTube sabe disso e se beneficia dessa ampla distribuição.

O efeito colateral, e perverso, é que o aumento da publicidade nessas plataformas é inversamente proporcional à quantidade de anúncios feitos nas empresas que de fato produzem conteúdo, sobretudo as empresas jornalísticas.

As big techs são hoje os maiores latifúndios da internet, para emprestar a feliz expressão utilizada recentemente pelo deputado Orlando Silva, relator do PL 2630 na Câmara dos Deputados. Elas praticam algo muito parecido com a exploração da terra e da mão de obra feita pelo agronegócio. Essa monocultura da distribuição de conteúdo, tão abundante e bem-sucedida quanto a produção de soja para exportação, tem afastado e condenado à inviabilização financeira as pequenas e médias propriedades de produção, as de alimentos e as de conteúdo.

Nas empresas jornalísticas, onde as notícias são de fato produzidas, o que se vê é fuga de capital, redações cada vez mais enxutas, anúncios cada vez mais escassos.

Ora, por que não remunerar a empresa ou a pessoa que produziu aquele conteúdo? Quando foi que se deliberou que não há nada de errado em publicar algo sobre o qual não se detém os direitos autorais - e lucrar com isso? Trata-se de uma relação de parasita e hospedeiro. E muitos de nós fingimos que não estamos vendo. Falta, no mínimo, um Ecad para o jornalismo no Brasil.

O Brasil tem o dever moral, econômico, social, cultural e político de aprovar uma legislação que regule as plataformas digitais. Para que o Twitter de Elon Musk responda judicialmente pelas ilegalidades que venha a cometer e para que as redes sociais sejam protegidas de intervenções judiciais repentinas e desproporcionais. Para que influenciadores não sejam criminalizados com base num regramento turvo e opaco. Para que não sejam reproduzidos e disseminados incentivos a novos ataques em escolas. Para que golpes de Estado não sejam incentivados. O resto é conversa para boi dormir.