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Caçadores e atiradores registraram 1 arma a cada 2 minutos em 2021
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O número de armas registradas por ano pelo Exército para a categoria de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) saltou 24 vezes em apenas seis anos. No ano passado, foram 257 mil armas registradas, um recorde na série histórica. Em 2015, esse número foi de apenas 10,5 mil, ou seja, houve uma alta de 2.340% no período.
A média de armas registradas chegou a 705 por dia, o que dá um registro novo a cada dois minutos. Os números levam em conta a expedição de CRAFs (certificados de registro de arma de fogo) por CAC.
O aumento no acervo armamentista foi substancial durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), que adotou medidas que facilitaram o acesso dos CACs a armas e munições (veja mais abaixo).
Bolsonaro sempre defendeu liberar o acesso a armas no país. Desde sua candidatura em 2018, prometeu agir para isso acontecer. Em agosto de 2021, após críticas às medidas para facilitar a compra de armas, ele disse a apoiadores que "tudo o que pode fazer por decreto, eu fiz".
"CAC está podendo comprar fuzil. CAC, que é fazendeiro, compra fuzil 762. Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Sei que custa caro. Tem idiota, 'ah, tem que comprar feijão'. Cara, se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar", disse.
O sistema, porém, não permite diferenciar o registro de arma nova ou renovação de registro de alguma já existente (armas podem ser transferidas entre acervos e podem ganhar novo registro).
Ao todo, em março de 2022, os CACs tinha um acervo total de 883 mil armas registradas —48% mais, por exemplo, que a soma de policiais, bombeiros e militares do Exército em 2020 (quando esse total era de 596 mil armas, segundo dados do Anuário da Segurança Pública).
Categorias crescem em números
Existem duas categorias distintas de registro de armas de fogo no país para civis. A primeira é de posse e porte para autodefesa, controlada pela PF (Polícia Federal) —que também vem crescendo nos últimos anos. No caso, o órgão gerencia o Sinarm (Sistema Nacional de Armas).
A outra é uma categoria para atividades com armas, os chamados CACs. O controle é feito pelo Exército, que gerencia o Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas).
O Sigma Exército é feito de forma distinta por categoria CAC. Todas as três tiveram alta de pessoas inscritas em 2021, seguindo uma tendência nos últimos anos.
Cada uma das modalidades tem regramentos específicos, mas em nenhum deles é permitido registro de arma para defesa pessoal —o que é restrito ao sistema controlado pela PF e que é bem mais rigoroso no quesito posse.
Porém, desde 2019, dez decretos e 14 portarias foram publicados dando novos regramentos à aquisição de armas e munições para os CACs. Por exemplo: agora, um atirador tem direito a ter até 60 armas (sendo 30 delas de uso restrito). Para cada arma é possível comprar até mil munições por ano —no caso de atiradores, esse limite pode ser ampliado em cinco vezes, desde que haja autorização do Exército.
Além dessas, também aumentou a validade do registro de cinco para dez anos e foi autorizado portar uma arma municiada nas ruas. Em 2021, segundo reportagem da Folha, a venda de munição dobrou.
Algumas das mudanças são questionadas judicialmente e estão em análise no STF (Supremo Tribunal Federal), que tem julgamento parado na Corte após pedido de vista do ministro Nunes Marques.
Para se registrar como CAC, o Exército cobra uma taxa de R$ 100 e faz uma série de exigências. São elas:
- Ter no mínimo 25 anos
- Certidões criminais nas Justiças federal, estadual, militar e eleitoral
- Declaração de inexistência de inquéritos policiais ou processos criminais
- Comprovantes de ocupação lícita e residência fixa
- Capacidade técnica para manuseio de arma de fogo e atestado de aptidão psicológica
- Comprovante de filiação a entidade de tiro desportivo ou de caça (exceção para colecionadores)
Segundo Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, o grupo CAC é heterogêneo e, em regra, tem atividades legais e restritas. O problema, diz, é a facilidade legal que foi dada nos últimos anos para que pessoas tenham acesso a armas e munições em grande quantidade.
"Não se trata de criminalizar a categoria, mas de afirmar que existem riscos gerais quando mais armas estão em circulação", afirma.
Ela diz que a alta no número de armas de fogo já traz impactos, como o aumento de feminicídios. "Ou seja, facilitar o acesso é um risco para uma mulher vítima de violência doméstica. Sem contar o direito a circular com uma arma, hoje tem mais gente circulando armada."
É preciso lembrar que esse aumento também se torna uma fonte de arma migrada do legal para o ilegal, porque elas podem ser furtadas, roubadas ou até mesmo desviadas de forma intencional."
Carolina Ricardo, do Instituto Sou da Paz
Em 3 de fevereiro, por exemplo, a Polícia Civil do Espírito Santo realizou uma operação em nove municípios para desbaratar uma quadrilha que comprava armas de fogo em nome de pessoas que não tinham passagens pela polícia e repassava para criminosos.
Somente em Linhares, 15 pessoas foram presas em flagrante e mais de 20 foram indiciadas pelos crimes de porte, posse e comércio ilegal de armas de fogo desde junho de 2021.
"Começamos a investigar e descobrimos que mais de 40 armas de fogo haviam sido adquiridas de forma legal e repassadas para estes grupos", disse o delegado Fabrício Lucindo, titular da 16ª Delegacia Regional de Linhares.
"Irresponsabilidade"
O pesquisador Daniel Cerqueira, que é professor dos mestrados de segurança pública da UVV (Universidade Vila Velha) e da UnB (Universidade de Brasília), classifica como "irresponsabilidade legislativa" do governo de Jair Bolsonaro os decretos que facilitam acesso a armas.
"Há inúmeras evidências internacionais e nacionais que mostram que mais armas trazem mais crimes, mais feminicídios, mais suicídios, mais acidentes fatais, inclusive envolvendo crianças", afirma ele, que é um dos coordenadores do estudo "Atlas da Violência" e hoje preside o Instituto Jones dos Santos Neves, ligado ao governo do Espírito Santo.
Para ele, esse aumento exponencial no acervo de armas circulando no Brasil vai ter impactos não só a curto prazo. "Não fosse esse número de armas, talvez a gente conseguisse diminuir mais os homicídios hoje. Essas armas ficarão décadas em circulação, e certamente algumas serão usadas para matar muito pai de família no futuro."
Cerqueira questiona, principalmente, a permissividade em excesso no número de armas e munição. "Para que até 5.000 munições para cada arma? Vamos ter munições espalhadas por aí. Fora o fato de que o governo Bolsonaro permitiu a reciclagem de cápsulas e também tirou do controle do Exército as máquinas de recarga de cápsulas", explica.
Ele diz ainda que, apenas em 2020, a quantidade de pólvora vendida para os CACs daria para produzir 59 milhões de munições para [pistola] 9 mm.
Uma política pública que se baseasse na racionalidade, que se baseasse no conhecimento científico e no compromisso com a vida, deveria ser de restrição e controle responsável das armas de fogo, e não é o que se vem fazendo aqui no Brasil. É uma tragédia o que está ocorrendo."
Daniel Cerqueira, pesquisador
A coluna questionou o Exército sobre como é feita a fiscalização e se havia aumento no quadro de pessoas que fazem isso na corporação por conta do aumento nos números de CACs.
O Centro de Comunicação Social do Exército informou apenas que a "fiscalização das atividades é realizada por ocasião das vistorias para concessão e revalidação de registro e também durante as operações de fiscalização conduzidas pelas Organizações Militares integrantes do Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados (SisFPC), do Exército".
O Exército ainda afirmou que existem 2.762 certificados de registros de CAC suspensos atualmente no país. A corporação não detalhou os motivos que levaram a essas suspensões.
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