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Duas em cada 3 famílias aptas estão fora do Auxílio Gás: 'Sigo na lenha'
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Ciria de Lima da Silva, 54, mora com o marido em um barraco na comunidade 14 de Novembro, no município de Paulista (Grande Recife). Ela recebe apenas o Auxílio Brasil e aguarda ser contemplada com o programa Auxílio Gás dos Brasileiros, pago pelo governo federal desde dezembro de 2021.
Silva faz parte de uma dos mais de 10 milhões de famílias brasileiras que estão aptas e deveriam ter prioridade (veja critérios mais abaixo), mas não recebem o valor pago pelo governo. Em agosto, apenas 5,6 milhões dos 16,3 milhões de famílias que têm direito ao benefício receberam o auxílio.
A tabela da demanda reprimida do programa foi produzida pelo grupo de vigilância socioassistencial da Câmara da Assistência do Consórcio Nordeste, com base nos dados do Cadastro Único, e repassada à coluna com exclusividade.
Segundo o Ministério da Cidadania, são aptas ao benefício todas as famílias com renda per capita (por pessoa) de até meio salário mínimo mensal (R$ 606 no valor atual) e com dados atualizados no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (o CadÚnico).
"Se por um lado o auxílio significou alívio para a população mais pobre, haja vista o exorbitante aumento do preço do gás de cozinha, por outro se tornou um pesadelo. Os dados levantados mostram o insuficiente atendimento à população que tem perfil para este programa e não é atendida", afirma Shirley Samico, assistente social e membro desse grupo de vigilância do consórcio.
Expostas ao risco e à fome
Sem o auxílio, muitas pessoas acabam recorrendo ao uso de outros meios combustíveis. Ciria, por exemplo, conta que, quando o botijão de gás acaba, ela cozinha usando lenha catada em uma mata próxima à comunidade.
"Eu sigo na lenha, não tenho o que fazer. Quando não tenho, uso também álcool. Inclusive minha mão já pegou fogo uma vez, quando fui colocar álcool dentro do fogãozinho. Queimei feio meus dedos", afirma.
Ela explica que já foi ao CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) do município, mas foi informada que nada mais poderia ser feito. "Eles falam que tem de esperar, mas nunca recebo. Vejo algumas pessoas aqui recebendo, e outras não. Não procurei mais depois disso, mas acho injusto", diz.
Auxílio tem --ou deveria ter-- grupos prioritários
Criado em dezembro de 2021, o Auxílio Gás dos Brasileiros pagava, inicialmente, o valor de 50% da média do preço nacional de referência do botijão de 13 kg, com base na ANP (Agência Nacional do Petróleo). O último dado do Sistema de Levantamento de Preços mostra que o valor médio nacional está em R$ 111,91.
Entretanto, a Emenda Constitucional nº 123, de 14 de julho, concedeu uma parcela extraordinária do benefício até o final do ano. Assim, ele dobrou de valor e autorizou o pagamento integral do preço médio do botijão.
O pagamento aos beneficiários é feito bimestralmente, com próxima parcela a ser paga em outubro pelo governo federal. Não há informações sobre aumento do número de beneficiários.
Na portaria que determina as regras do programa, o governo estabelece critérios para a seleção de famílias, na seguinte ordem:
- Com mulheres vítimas de violência doméstica que estejam sob o monitoramento de medidas protetivas de urgência;
- Com menor renda familiar mensal per capita;
- Com maior quantidade de membros na família;
- Beneficiárias do Programa Auxílio Brasil;
- Com data de atualização cadastral mais recente.
Segundo a norma do programa, a cada dois meses, as famílias deveriam ser selecionadas de forma automatizada para serem incluídas no benefício, de acordo com os critérios de priorização definidos pelo Ministério da Cidadania.
O ministério não respondeu à solicitação de informações sobre os critérios que usa para incluir famílias prioritariamente —a reportagem encontrou, por exemplo, pessoas sem nenhuma renda e com seis filhos sem receber o valor.
De forma genérica, diz em uma nota técnica de maio que, "à medida que famílias sejam desligadas do programa, aquelas elegíveis e eventualmente ainda não selecionadas são incluídas gradualmente, por meio de sistema informatizado e impessoal, observada a disponibilidade orçamentária e financeira".
Faz falta para quem recebe pouco
Edilene Antonia Gomes, 33, também mora em um barraco da comunidade 14 de Novembro com os seis filhos. "Desde que saiu esse benefício, eu espero, espero, mas nunca recebo. Fui atrás, disseram que caía automaticamente. Fiz até o recadastramento [do CadÚnico] na esperança. Espero que mês que vem possa receber", diz.
Ela tem filhos nas idades entre 1 e 17 anos e conta que, quando não tem gás de cozinha, usa o fogão elétrico —na comunidade não há cobrança de energia elétrica. "Já levei choques nele por descuidos, ou com a mão molhada, ou mesmo pelo cabo da panela", cita.
A única renda dela para sustentar a casa com sete pessoas é o benefício do Auxílio Brasil no valor de R$ 621 —mas que está praticamente congelado há anos, já que o aumento do piso para R$ 600 não previa aumento para famílias com mais crianças e que já recebiam acima do valor.
Tudo ficou muito mais caro. Ver a situação e não poder dar um alimento bom ao seu filho é de matar do coração. Aqui não temos acesso à creche e, mesmo que apareça uma faxina, não vou porque não tenho com quem deixar nem como pagar para alguém ficar meus filhos."
Edilene Antonia Gomes, que não recebe o Auxílio Gás
O que ajuda a comunidade é uma ação da Marcha Mundial das Mulheres, em parceria com entidades, que fornece café da manhã e almoço às terças, quintas e sábados. "Além disso, temos uma horta agroecológica comunitária e fazemos trabalho com artesanato com essas mulheres", conta a voluntária Solange Samico.
Nesta época do ano, muitas moradoras da comunidade têm uma alternativa ao trabalhar por diárias entre R$ 30 e R$ 40 para fazer campanha eleitoral. "Isso ajuda a comprar um gás, uma coisa melhor para a casa", diz Samico.
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