PI: Cemitério tem devoção por 'almas' de soldados mortos em batalha de 1823
Tombado pelo patrimônio histórico desde 1938, o Cemitério do Batalhão, em Campo Maior (PI), guarda a lembrança da Batalha do Jenipapo, uma das mais marcantes guerras do país e que opôs sertanejos piauienses contra portugueses em 1823 em razão da declaração de independência um ano antes.
Diz a história local que, além dos corpos, as almas dos soldados que lutaram há exatos 200 anos contra portugueses ajudam pessoas a realizar milagres. Em peregrinações, devotos pagam promessas a elas.
Por serem pessoas mortas em uma luta sangrenta, às suas almas são atribuídos diversos milagres, fazendo com que muitos fiéis recorram a sua intercessão. A concretização dessas promessas é percebida nos ex-votos encontrados no Cruzeiro do Cemitério do Monumento do Jenipapo.
Márcio Douglas de Carvalho e Silva, no artigo "Em busca de milagres: promessas e ex-votos às Almas da Batalha do Jenipapo"
Aos 76 anos, o coordenador do Monumento aos Heróis do Jenipapo, Antônio Miranda, diz que perdeu as contas de quantas pessoas já foram ao local para pagar promessas e fazer pedidos.
Lá já foi gente de todo canto! As pessoas têm um ritual para pagar a promessa: se foi curado de uma dor de cabeça, manda fazer uma peça de madeira da cabeça e deixa lá; vale para braço, perna, onde for. Se for problema de pele ou uma criança, leva uma camisa dela. Se passa no vestibular ou em um concurso, deixa o caderno em que estudou.
Antônio Miranda, coordenador do Monumento aos Heróis do Jenipapo
O cemitério
A peregrinação ao local ocorre desde a batalha, e a fama de milagres cresceu. Miranda conta que vai ao monumento de domingo a domingo. Ele explica que o Dia de Finados é sempre um dos mais lotados.
Lá tem o cruzeiro, uma cruz maior que é feita para o povo acender a vela e rezar. É um ritual histórico e marcante.
Antônio Miranda
O cemitério está localizado a 5 km da cidade e fica na região que foi palco da batalha. Não se sabe o número exato de mortos naquela disputa, mas estima-se que, do lado brasileiro, passaram de 200.
A batalha é lembrada com orgulho pelo Piauí, que comemorou neste ano o bicentenário com a realização de um ato público (com direito a vídeo do presidente Lula (PT) e encenação da guerra.
Segundo o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o cemitério guarda alguns dos "restos mortais dos heróis da Batalha do Jenipapo." As sepulturas são marcadas por pedras e cruzes e madeira, sem inscrições ou nomes.
Na página sobre o cemitério, o Iphan afirma que o estado de conservação do local é "ruim", segundo vistoria no último dia 6 de junho.
Podemos perceber o quanto essas pessoas se importam e têm fé nas almas dos combatentes pela maneira como esse sentimento é expresso. A forte ligação religiosa e simbólica colocada neste lugar é algo a ser levado em conta quando se tratar de estudar mais profundamente este espaço ou até uma possível escavação.
Anne Kareninne Souza Castelo Branco, autora do artigo "Cemitério do Batalhão do Jenipapo: pensando na tradição antes da intervenção"
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Quero receberMas os combatentes estão enterrados lá?
Apesar de toda movimentação em torno da história, não se sabe se o cemitério realmente foi local de sepultamento de combatentes mortos.
Neste cemitério realmente existem pessoas enterradas, mas a maneira como foi feita nos remete a acreditar que cada cova representa um combatente enterrado, sendo essa afirmativa falsa, ocasionada pela necessidade de um maior reconhecimento, ocultado por políticos de gerações anteriores, a fim de preservar a imagem de uma independência sem lutas e pacífica, como ocorreu no sul e sudeste do país.
Anne Kareninne Souza Castelo Branco
A arqueóloga Anne Kareninne Souza Castelo Branco diz que, apesar das divergências da veracidade do cemitério em relação aos combatentes enterrados, "ele tornou-se a prova concreta, para o povo Piauiense, da existência da batalha."
A professora e pesquisadora do curso de Arqueologia da UFPI (Universidade Federal do Piauí) Maria do Amparo Alves de Carvalho estuda a Batalha do Jenipapo desde 2010 em busca de documentos e vestígios que possam explicar melhor a dinâmica do local.
Segundo ela, consta nos escritos do monsenhor Joaquim Chaves que o major português João José da Cunha Fidié (que era governador das armas do Piauí — maior autoridade de um Estado na época) voltou depois da batalha para enterrar seus soldados que morreram no local. Entretanto, ela afirma que há lacunas sobre o tema.
Não há registros sobre os enterramentos de populares desse período. Os livros de óbitos da paróquia não têm os registros dos anos de 1823 a 1826. Ainda precisamos analisar esse silêncio.
Maria do Amparo Alves de Carvalho, professora da UFPI
Amaro explica ainda que o local teve enterros até a década de 1970, quando a prática foi proibida por causa da descaracterização da área. Ela diz que, mesmo com valor histórico, nunca foi realizada sondagem para identificação das pessoas ali enterradas.
Fazer isso em cemitérios, especialmente considerado um campo santo como esse, é muito delicado. O cemitério é, sobretudo, um monumento simbólico do tempo da batalha.
Maria do Amparo Alves de Carvalho
Estado quer reforma, mas busca dinheiro
Responsável pela custódia do local, a Secretaria de Cultura do Piauí explica que o cemitério está em um complexo de área de um hectare, onde há —além do cemitério— um monumento em homenagem aos mortos, um estacionamento e um restaurante desativado.
Segundo Ismael Junior, coordenador de registro e conservação do patrimônio histórico do Piauí, a secretaria fez algumas intervenções antes do bicentenário, como a retirada de peças para revitalização do memorial (hoje, no local, há uma maquete interativa) e uma reforma do local das cruzes.
A secretaria tem um projeto, e está tentando recursos, para revitalizar o restaurante e para que o estacionamento se torne um parque ambiental. Isso fará com que o local tenha movimento diário em todos os momentos do dia.
Ismael Junior, coordenador de registro e conservação do patrimônio histórico do Piauí
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