Carlos Madeiro

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Reportagem

Como CE criou e silenciou história do campo de concentração da seca de 1915

A história da seca que assolou o Nordeste em 1915 poderia ser contada como mais uma tragédia no semiárido, mas ela carrega consigo uma mancha que, por anos, foi apagada da história —e que não guarda vestígios físicos, nem um número oficial de vítimas.

Naquele ano, sertanejos que fugiam da seca foram impedidos de entrar em Fortaleza e ficaram aglomerados em um campo de concentração, o batizado campo de Alagadiço (bairro da capital cearense, que depois mudou de nome e hoje chama-se José Alencar). Nele, centenas de pessoas morreram vítimas de epidemias, além da fome e falta de higiene.

O campo foi montado na gestão do governador Benjamin Liberato Barroso, que temia uma repetição do que havia ocorrido na grande seca de 1877, quando sertanejos foram em massa para Fortaleza, e a cidade que tinha 25 mil habitantes passou a ter 140 mil —milhares de pessoas morreram nas ruas, de fome ou doença. Em todo o Nordeste, foram cerca de 500 mil mortes.

Parte da história do campo de concentração é contada no livro "O Quinze", de Rachel de Queiroz. A personagem Conceição vai ao local "ajudando a tratar, vendo morrer às centenas as criancinhas lazarentas e trôpegas que as retirantes atiravam no chão, entre montes de trapos, como um lixo humano que aos poucos se integrava de todo no imundo ambiente onde jazia."

- E no Campo de Concentração não dão mais comida, não? Diz que lá ninguém morre de fome!
- Ora, se não morre! Aquilo é um curral da fome, doninha!

Diálogo de Dona Inácia com um pedinte, em "O Quinze"

Ilustração do "O Quinze' de Conceição, professora e voluntária nos campos de concentração, ajudando os necessitados
Ilustração do "O Quinze' de Conceição, professora e voluntária nos campos de concentração, ajudando os necessitados Imagem: Reprodução

Um dos poucos relatos independentes feitos à época é de Rodolfo Teófilo, um farmacêutico e historiador das secas. Ele escreveu o livro "A Seca de 1915", no qual traz alguns detalhes do que viu e se tornou uma das principais fontes das pesquisas mais recentes.

Logo na primeira vez que visitou o local, Rodolfo disse que "em pouco tempo esse campo de concentração será conhecido como um Campo Santo, devido ao número de almas que nós poderemos contabilizar nesse espaço."

"Rodolfo diz que o campo de concentração de Fortaleza tinha em torno de 500 m² e abrigava entre sete e dez mil retirantes. Então imagina o morticínio que acontecia nesses espaços", diz a pesquisadora Kênia Sousa Rios, da UFC (Universidade Federal do Ceará), autora do livro "Engenhos da Memória: narrativas da seca no Ceará".

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Por que o campo foi criado?

Imagens dos flagelados da seca à época
Imagens dos flagelados da seca à época Imagem: Fortaleza Nobre/Reprodução

A situação da grande seca de 1877 gerou um trauma na elite cearense, que temia a repetição dos roubos e de um grande número de pedintes nas ruas. Isso alimentou a ideia de criar colônias fora das cidades.

Segundo a historiadora da arquitetura Laura Belik, que pesquisou o tema e publicou tese de doutorado na Universidade da Califórnia, o campo de 1915 é uma continuidade de uma política pública que já acontecia em anos de seca para isolar os sertanejos.

Antes, havia uma outra política dos abarracamentos, com uma série de locais de concentração dos refugiados das secas, porque as elites não queriam se misturar com essa população. Então, eles ficavam concentrados em determinados locais pela cidade.
Laura Belik

Apesar de as barracas conseguirem conter a chegada de imigrantes, ainda havia dispersão na cidade. "Então os moradores tinham muito contato, e não era o que as elites queriam. Havia todo um papo higienista por trás", afirma.

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A ideia foi sendo consolidada até que veio uma nova grande seca, em 1915, e pela primeira vez um campo de concentração foi criado. "Basicamente, a ideia é juntar os abarracamentos em uma localização específica", explica.

O campo durou até o início de 1916, quando a seca arrefeceu, e os sertanejos voltaram às suas terras.

Laura lamenta que nenhuma construção tenha sobrado para contar a história. "Não foi só o silenciamento, mas hoje a gente não tem resquícios desse campo de 1915. É um patrimônio que a gente perdeu."

Isso é uma questão muito política, de você apagar a memória de uma tragédia, de um silenciamento do governo. No caso de 1915, foi um campo montado pelo governo local, tem muito a ver com a memória que as elites não queriam criar.
Laura Belik

Relatório do governo do Ceará de 1916 falando sobre o campo do Alagadiço
Relatório do governo do Ceará de 1916 falando sobre o campo do Alagadiço Imagem: Reprodução

Fim da ditadura estimulou pesquisas

A pesquisadora Kenia Rios conta que o tema só começou a ser pesquisado mais a fundo para ser apresentado em detalhes à população após a reabertura política. Por meio de documentos oficiais e recortes de jornais, ela encontrou informações que deixam claro a situação que era omitida da história oficial do Ceará.

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A gente sai ali da 'educação, moral e cívica' e vai para uma historiografia que se compromete com a inserção de um novo debate. Nele, eclodem de forma intensa esses temas, que é o que a gente chama na historiografia de história vista de baixo.
Kenia Rios

A partir dos anos 1990, começaram a sair resultados de pesquisas que mostraram como as elites classificaram como exitoso o campo e a forma de lidar com os pobres e a mendicância em 1915.

O primeiro grande documento pós-ditadura foi feito por Frederico de Castro Neves, professor aposentado do departamento de história da Universidade Federal do Ceará.

Em artigo chamado "Curral dos Bárbaros", publicado na Revista Brasileira de História em 1995, ele cita como a tragédia do campo foi vista como uma política higienista eficiente e elogiável.

"Pode-se perceber como uma primeira experiência que deixou marcas tão negativas na cidade pode se traduzir, 17 anos depois, em outra experiência que conta com o apoio e admiração de governantes, técnicos e jornalistas", diz.

Flagelados da grande seca de 1877 fotografados num estúdio de Fortaleza
Flagelados da grande seca de 1877 fotografados num estúdio de Fortaleza Imagem: J. A. Correa/Acervo Biblioteca Nacional
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Novos campos em 1932

Na grande seca de 1932, o governo do estado não só repetiu, como ampliou o projeto de isolar os retirantes. "O campo de 1915 é ponto-chave porque em 1932 são criados sete grandes campos, e não só nas entradas de Fortaleza, mas no estado inteiro", cita Laura Belik.

Segundo ela, o campo de 1915 foi feito com base em recursos locais e foi muito improvisado. Diferente de 1932, quando o estado contou com significativa ajuda federal do governo Getúlio Vargas.

Nesse caso, as ruínas do campo em Senador Pompeu ficaram preservadas e, em 2019, foram tombadas pelo governo do estado. O Sítio Histórico do Patu tem o único conjunto arquitetônico dos sete campos instalados no Ceará em 1932 que permanece com ruínas de pé.

Fachada da oficina que compreende o conjunto de imóveis de Senador Pompeu (CE), onde havia um campo de concentração em 1932
Fachada da oficina que compreende o conjunto de imóveis de Senador Pompeu (CE), onde havia um campo de concentração em 1932 Imagem: Salvino Lobo/Secult-CE

Reportagem

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15 comentários

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José Freire

É oportuno lembrar que um certo messiânico presidente da República, certa vez foi questionado sobre as mortes de brasileiros na covid-19, respondeu: NÃO SOU COVEIRO.

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Mauricio Bernardi

Essa tragédia é da mesma época da Guerra do Contestado, em Santa Catarina, outra passagem muito mal lembrada da nossa História. Segundo a IA, "A Guerra do Contestado foi uma revolta armada que ocorreu entre 1912 e 1916 na fronteira entre Santa Catarina e Paraná. O conflito envolveu disputas territoriais, insatisfação social e messianismo religioso". A Guerra do Contestado não teve uma escritora para contar parte dos acontecimentos, como foi o caso de Raquel de Queiroz, em O Quinze, na seca de 1915, no Ceará, ou a Guerra de Canudos, registrada por Euclides da Cunha em Os Sertões. 

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Mohammad Taghi Navid Tahamtani

Obrigado por este artigo muito bom. Revisão de dados e eventos históricos são obrigação de qualquer cultura e historiador. Naturalmente, ha resistência de governos e povos a este revisão de dados estatísticas, de até eventos tão recentes, como guerra na Ucrânia ou segunda guerra mundial, especialmente quando tratar de encobrir, inventar ou exagerar números de "crimes de guerra".

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