Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Prestes a se aposentar, Marco Aurélio deixa TV Justiça como maior legado
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O STF (Supremo Tribunal Federal) pode ser dividido em duas eras: antes e depois da TV Justiça. Antes de 2002, quando surgiu o canal, pouco se sabia sobre a Corte.
Ninguém assistia às sessões — a não ser pela meia dúzia de advogados e jornalistas que comparecia fisicamente ao plenário. Os ministros podiam andar incólumes na rua. Ninguém os abordaria. Os nomes deles não eram conhecidos, muito menos as fisionomias. O tribunal era um vértice obscuro na Praça dos Três Poderes.
Quando o ministro Marco Aurélio Mello, o então presidente do tribunal, teve a ideia de inaugurar um canal para transmitir as sessões de julgamento, ninguém gostou. Os ministros torceram o nariz. Afinal, perderiam a privacidade. Teriam suas discussões expostas para o grande público.
"O ministro Carlos Velloso [aposentado] me desaconselhou, disse que eu ia me desgastar a toa", lembra Marco Aurélio.
O ministro se aposenta em julho e pode se gabar de deixar a TV Justiça como seu principal legado. "O que se tinha como caixa fechada, agora é uma caixa aberta", diz, referindo-se à maior transparência conferida ao Judiciário com o canal.
Composição com perfil diferente
Naquela época, o perfil dos ministros era totalmente diferente da composição atual. Neri da Silveira, Sydney Sanches, Ilmar Galvão tinham verdadeiro pavor de esbarrar com um jornalista em seus percursos.
O próprio Celso de Mello — que, pouco antes de se aposentar, no ano passado, se tornou uma espécie de porta-voz do tribunal — também não gostava muito de dar declarações públicas.
Marco Aurélio Mello sempre foi o mesmo. Nos 31 anos como ministro do STF, sempre atendeu a imprensa, sempre gostou de dar entrevista, sempre foi afeito às declarações polêmicas. Não seria de se espantar ser dele a ideia de criar um canal de TV para transmitir a vida do Judiciário.
Além da aversão dos ministros de serem expostos, eles se perguntavam quem assistiria àquele canal. Na época, o Judiciário era um poder pouco demandado. A vida política era restrita ao Congresso Nacional e aos órgãos do Executivo. Longe do noticiário e da vida pública, em uma era pré-redes sociais, o STF não era digno de atenção.
Conhecido no tribunal como "do contra", Marco Aurélio foi adiante com seu projeto audacioso de dar holofotes ao tribunal.
Marco Aurélio cria a TV Justiça
Por uma conjuntura do destino, em 2002 o ministro assumiu a Presidência da República em cinco ocasiões. Na ausência do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e do então presidente da Câmara, Aécio Neves (PSDB-MG), a linha sucessória deu ao presidente do Supremo o dever de sentar-se na cadeira do chefe do Executivo em caráter interino.
Em uma dessas cinco vacâncias, Marco Aurélio aproveitou para sancionar, ele mesmo, o projeto de lei que inaugurava a TV Justiça. "No jargão popular, eu bati o córner e cabeceei a gol", conta.
Em 17 de maio de 2002, o ministro discursou em cerimônia do Palácio do Planalto para anunciar o novo canal de TV. "Contei com a visão de estadista do presidente Fernando Henrique Cardoso. Indaguei ao presidente sobre qual seria sua posição dele sobre o projeto (da TV Justiça). Ele afirmou que tanto o veto, quanto a sanção ficariam ao meu cargo. Este ato, esta atitude será sempre alvo de reconhecimento", disse.
O canal entrou no ar em 11 de agosto.
TV Justiça mudou hábitos do STF
Assim que começaram as transmissões, uma ala do STF estava indignada.
"Eu estava em viagem à China, quando houve uma revolução, capitaneada pelo ministro Moreira Alves (aposentado), pedindo para encerrar transmissões das sessões. Combinamos que, na volta da viagem, faríamos uma sessão para deliberar a respeito. Quando retornei, não foi necessário fazer nada, porque os ministros já tinham se convencido da necessidade da TV. Moreira Alves viu que não teria o apoio no colegiado", lembra Marco Aurélio.
A partir do momento que a TV Justiça começou a jogar luz no tribunal, os ministros começaram a se preparar para sair "bem na fita". Reza a lenda que um ministro pediu para ser filmado apenas de determinado ângulo, que lhe era mais favorável na estética. Outros passaram a escolher melhor o terno e a gravata. E, acima de tudo, os ministros passaram a votar de forma mais clara, didática e demorada, em uma espécie de prestação de contas ao telespectador.
Outro detalhe: antes da TV Justiça, não existia sequer pauta de julgamentos. Nem os ministros e nem o público sabiam previamente o que seria julgado. Cada ministro levava na hora o processo que queria pautar.
O hábito favorecia o alto número de pedidos de vista, porque muitos ministros eram pegos de surpresa com o tema levado ao plenário. E, como não se preparavam previamente, os votos costumavam ser mais curtos do que hoje.
Mas a TV Justiça não inaugurou a vaidade, a polêmica ou as brigas entre os ministros. Ela apenas deu publicidade a esse aspecto da Corte. Em 2001, Marco Aurélio concedeu um habeas corpus ao banqueiro Salvatore Cacciola. O réu foi para a Itália, aproveitando-se de sua dupla cidadania, e só foi capturado em 2008 para cumprir pena por fraude financeira e desvio de dinheiro público. Não precisou da TV Justiça para a decisão ser comentada no país inteiro.
No mesmo ano, Gilmar Mendes, que era advogado-geral da União, disse que havia no país um "manicômio judiciário". Azedou, assim, a relação com seus futuros colegas do STF.
Também antes de inaugurada a TV Justiça, o ministro Sepúlveda Pertence, hoje aposentado, abandonou o plenário durante julgamento, depois de um desentendimento com um colega. Em outra ocasião, os também aposentados Moreira Alves e Xavier de Albuquerque discutiram duramente em plenário, longe de qualquer câmera.
Assuntos do Judiciário se popularizaram
A TV Justiça não apenas alçou os ministros à fama, mas também popularizou assuntos antes restritos ao mundo jurídico. Nas redes sociais, as pessoas se sentem à vontade para emitir juízo de valor sobre as decisões do STF - mesmo que não conheçam os meandros técnicos que levaram os ministros a conceder ou negar o direito.
Ao decidir determinado processo, um ministro pode ficar sujeito a críticas e ataques. Aconteceu, por exemplo, com Ricardo Lewandowski durante o julgamento do mensalão em 2012. Enquanto o relator, Joaquim Barbosa, hoje aposentado, votava pela condenação da maioria dos réus do esquema de corrupção posto em prática no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Lewandowski fazia o papel de contraponto em muitos casos. Acabou recebendo ameaças e reforçou a segurança pessoal.
O STF de hoje é diferente do tribunal de duas décadas atrás. Se antes os ministros eram pouco afeitos a declarações públicas, hoje pode-se dizer que quase todos têm algum tipo de interlocução com a imprensa. Os que não dão entrevista, muitas vezes falam "em off" — no jargão jornalístico, é quando uma fonte fornece informações e pede para não ter seu nome divulgado.
Há também ministros que proferem palestras ou emitem notas oficiais sobre assuntos diversos. Há inclusive os que se manifestam em redes sociais: Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes têm conta no Twitter e eventualmente comentam temas da atualidade por lá.
Há 20 anos, o STF era menos demandado no jogo político do que hoje. Era menor a quantidade de ações que questionam a legalidade de normas, chamadas de "controle concentrado". Com isso, eram menores as chances de embate com o Legislativo ou o Executivo. Também eram raros os processos contra políticos, outro foco de conflito entre os Poderes.
Com o protagonismo menor, também era escassa a procura por ministros para comentar a vida nacional. Ou seja, o Supremo era mais silencioso - tanto o plenário, com menos decisões polêmicas, quanto nos debates sobre temas nacionais, fora dos julgamentos.
Passados 19 anos da criação do canal, Marco Aurélio não se arrepende de ter comprado a briga.
"Acho que a TV aproxima o Judiciário da sociedade. Até acompanham a TV justiça. O interesse diz respeito ao Direito, o Direito rege a vida em sociedade. Você não dá um passo sem estar submetido a uma regra jurídica. Todos querem ter uma noção mínima de Direito"
Marco Aurélio, ministro do STF
E o excesso de exposição?
"Isso contribui para o controle externo do Judiciário. Prestamos conta ao contribuinte, que tem o direito de aplaudir e de criticar. A crítica é construtiva".
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