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Chico Alves

Não há nada fora de contexto: Guedes disse o que realmente pensa

O ministro da Economia, Paulo Guedes - André Coelho/Estadão Conteúdo
O ministro da Economia, Paulo Guedes Imagem: André Coelho/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

08/02/2020 17h03

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Assim como o álcool, sinceridade é algo que deve ser usado com moderação. Quem abre o peito para mostrar ao mundo o verdadeiro conceito que tem sobre as pessoas e as coisas pode ter muitos problemas.

Com humor, a saudosa Fernanda Young mostrou encrencas desse tipo no programa "Super Sincero", que há alguns anos foi exibido na TV Globo. Em um dos episódios, o protagonista, vivido por Luiz Fernando Guimarães, aparecia trabalhando como atendente de telemarketing.

A um cliente que ligou para reclamar do defeito de um produto, o personagem responde: "O problema é seu. Comprou uma marca vagabunda, agora compra outra". Obviamente, foi demitido.

Esse é um risco que o super sincero ministro Paulo Guedes não corre. No lugar privilegiado que ocupa, pode escancarar o coração à vontade e mostrar despudoradamente o que acha sobre tudo e todos. Ao contrário do personagem da série global, ele tem certeza que não será demitido.

Mas não está livre de encrencas.

Mesmo depois de chamar os servidores públicos de parasitas, Guedes continuará ministro. E ainda tem ao seu dispor um exército de robôs das redes sociais, bolsonaristas e liberais de carne e osso para fazer coro à sua desculpa esfarrapada de que a fala foi usada "fora de contexto" pelos jornalistas — mesmo que a frase tenha sido reproduzida completa na imprensa.

Nada está descontextualizado. O ministro pensa aquilo mesmo que a sinceridade de suas palavras revelou: para ele, o funcionalismo é um estorvo, que só faz sugar recursos do governo.

Se professores se desdobram para dar aulas em lugares inóspitos não importa; muito menos o esforço de médicos e enfermeiros para superar as deficiências do serviço público para prestar um bom atendimento; o mesmo para inúmeras outras categorias. O conceito de Guedes é que todo o funcionalismo é composto de sanguessugas em busca de aumento automático.

Poderia argumentar de forma equilibrada, com números, mostrando que o caixa do governo está em dificuldades e que é necessária uma adequação. Poderia mostrar que não quer espremer só os bagrinhos, se em oportunidades anteriores tivesse cobrado contribuição dos militares, do Judiciário e de outras castas intocáveis. Poderia chamar todos a colaborar para um plano conjunto.

Não fez isso, apenas expôs seu sincero desprezo pelos funcionários públicos, para depois culpar a imprensa.

A língua de Guedes já o traiu outras vezes, como quando disse que o problema da pobreza brasileira é do pobre que não sabe poupar, ao fazer coro ao presidente Bolsonaro para tecer críticas estéticas à primeira-dama francesa (afinal, o ministro é um mister universo) ou na ocasião em que justificou a possibilidade da aplicação de um novo AI-5.

Apesar do terno bem cortado, dos óculos de grife e do perfume caro com que se banha, Guedes age como um troglodita. Especialmente quando tem diante de si uma plateia de empresários, sente-se à vontade para libertar seus instintos. É como se fosse a versão econômica do cercadinho de Bolsonaro no Palácio do Alvorada. Nas palestras, Guedes chega, desabafa, é aplaudido e vai embora. Se houver alguma repercussão negativa, culpa a imprensa depois, como costuma fazer o presidente.

Foi assim mais uma vez, na tal fala dos "parasitas". O sincericidio do ministro repercutiu pessimamente. A essa hora, Rodrigo Maia deve estar queimando a mufa para tentar driblar a revolta insuflada por Guedes contra a naturalmente antipática reforma administrativa. O que já não era fácil ficou ainda mais difícil.