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Chico Alves

Feminista e politizada, rainha de bateria da Mangueira quebra esterótipos

Evelyn Bastos, rainha de Bateria da Mangueira - Divulgação Riotur / Gabriel Nascimento
Evelyn Bastos, rainha de Bateria da Mangueira Imagem: Divulgação Riotur / Gabriel Nascimento

Colunista do UOL

22/02/2020 04h00

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No mundo do Carnaval, rainhas de bateria têm seus atributos medidos em centímetros. Por esse parâmetro, Evelyn Bastos, que há sete anos desfila à frente dos ritmistas da Mangueira, não deixa a desejar: tem 104 cm de quadril, 66 cm de pernas e 93 cm de seios siliconados. Evelyn, no entanto, é dona de outros atributos que nada têm a ver com a fita métrica. Diferente da maioria das colegas de agremiações coirmãs, ela faz questão de marcar posição em debates de temática social, é feminista, antirracista e crítica das operações policiais que causam tantas mortes nas favelas.

Evelyn não vê nenhuma incompatibilidade entre o papel sensual que vive no Sambódromo e o discurso engajado. "Não é obrigatório estar de terno e gravata para falar de política. Alguém usando fantasia de rainha de bateria também pode", diz a jovem de 26 anos, que é formada em Educação Física e cursa História na Uerj.

No Sambódromo, Evelyn costuma misturar essas duas personas, a de foliã e a de ativista. Foi o que fez no domingo passado, no ensaio técnico da Mangueira, na Sapucaí. Surpreendeu o público usando uma capa com a identificação de crianças assassinadas em operações policiais nas favelas cariocas.

A convite dela, os nomes foram escritos à mão pelas próprias mães das vítimas. No body sob a capa, trazia a inscrição "Maria das Dores", homenagem às mulheres que perderam filhos de maneira tão trágica.

"O próprio samba da escola fala 'minha mãe é Maria das Dores Brasil'. Na nossa cabeça vem a imagem do corpo do inocente Jesus, machucado, no colo de Maria", explica Evelyn. "Isso me levou a fazer a homenagem a essas mães das comunidades que tiveram seus filhos confundidos com bandidos unicamente por serem pretos e morarem nas favelas".

Evelyn Bastos, rainha de bateria da Mangueira - Divulgação - Divulgação
A roupa de protesto de Evelyn Bastos
Imagem: Divulgação

Para quem, como ela, tem posicionamento político tão forte, a Mangueira é o ambiente ideal. Nos últimos anos, a Verde e Rosa tem privilegiado mensagens de crítica social em seus enredos. Em 2019, houve homenagem a Marielle Franco, a vereadora carioca assassinada em 2018, junto com o motorista, Anderson Gomes. Este ano, no enredo "A verdade vos fará livre", a escola vai mostrar um Jesus excluído e questionar como ele seria tratado se estivesse vivo hoje.

Ela gosta desse estilo. "Chega uma hora que o Carnaval acaba e voltam os tiroteios, que impedem as mães de levar seus filhos para a creche, que suspendem as aulas. Volta a realidade do menino que desce para tentar um emprego e é recusado por causa do comprovante de residência, que é abordado de maneira mais agressiva pela polícia porque está saindo de uma viela da comunidade", diz.

"São questões que só quem mora dentro da favela sente na pele. Tem esses problemas e tudo vira festa? Não. A Mangueira é local de política, lugar de uma comunidade totalmente excluída. Nessa hora em que todos os olhares se voltam para o Sambódromo, porquê não tratar de nossas belezas e nossos problemas?", questiona Evelyn.

Um dos trechos mais fortes do samba enredo de 2020, de Luiz Carlos Máximo e Manu da Cuíca. é o que diz "Favela, pega a visão/ Não tem futuro sem partilha/Nem messias de arma na mão". Os autores negam que seja uma citação ao presidente Jair Bolsonaro, mas é difícil escapar dessa associação.
A rainha de bateria se posiciona claramente: "A gente tem que apoiar quem apoia a gente, e o governo atual não tem absolutamente nenhuma simpatia pela nossa cultura. Essa manifestação cultural não tem valor para o presidente".

Entre os 83 mil seguidores de Evelyn no Facebook e 268 mil no Instagram, já houve quem reclamasse das falas políticas da mangueirense. "Disse que ia continuar falando e quem não gostasse bastava deixar de me seguir", recorda. "Mesmo quem não gosta de política, sem saber, faz política quando abre os olhos, sai na rua e conversa com alguém".

Das bandeiras de Evelyn, o feminismo é uma das principais. Ela não vê sentido na competição entre as rainhas de bateria das diversas escolas e só tem objeção àquelas que pagam para desfilar. "Esse espaço tem que ser das crianças nascidas e criadas dentro da escola, que têm amor pelo samba. Cada rainha que paga é um sonho a menos de uma menina da comunidade", lamenta.

Evelyn Bastos - Divulgação - Divulgação
Evelyn estampa na blusa o orgulho da favela
Imagem: Divulgação

Fala por experiência própria. Nascida na Mangueira, filha de um pintor de carros e uma costureira, que foi rainha de bateria da escola entre 87 e 89, Evelyn passou aos sete anos a frequentar um projeto social que funcionava na quadra da escola, onde teve aulas de samba . Também aprendeu a tradição cultural do lugar, além de receber apoio psicológico e reforço escolar. "A vida no morro é muito difícil. Assim como eu, quando era menina, as crianças da comunidade vêem a escola de samba como um refúgio de felicidade", explica.

Tanto quanto no ano passado, o desfile da Mangueira em 2020 promete dar o que falar. A ideia de mostrar o filho de Maria como alguém comum já recebeu críticas de alguns religiosos, foi alvo de fake news e até ameaças.

Ela explica a proposta da escola: "E se Jesus ressuscitasse hoje dentro da favela da Mangueira, como seria visto? Como a sociedade, o asfalto, lidaria com o Jesus que anda no meio dos pobres e oprimidos atuais? Será que permitiriam a entrada dele em algumas igrejas?"

Essas perguntas serão levadas amanhã ao Sambódromo, sob o som poderoso da bateria mangueirense. À frente dos ritmistas estará Evelyn Bastos, a escultural rainha que já sabe muito bem as respostas.