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Chico Alves

Atenção, Bolsonaro: robôs não batem panelas

Panelaço - Reprodução de vídeo
Panelaço Imagem: Reprodução de vídeo

Colunista do UOL

18/03/2020 11h27

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Por muito tempo, as panelas ficaram confinadas em seu local de origem: a cozinha. A última vez que saíram de lá para servir de instrumentos de percussão nas janelas dos brasileiros foi em 2016, pouco antes do impeachment de Dilma Rousseff. O som metálico voltou ontem, em várias capitais. Curiosamente, muitos dos que batucaram na noite desta terça-feira, gritando "Fora, Bolsonaro", foram os mesmos que gritaram "Fora, Dilma".

Como chegamos a esse momento insólito? A pergunta poderia ser encaminhada a Jair Bolsonaro, que em menos de um ano e meio de mandato fez tudo o que pôde para que os tradicionais utensílios de culinária voltassem a ser usados como instrumentos de protesto político.

De saida, a lista de barbeiragens incluiu a manutenção do discurso agressivo de campanha, a decisão de governar sem base no Congresso e a surpreendente prioridade concedida à chamada ala ideológica dos seus apoiadores, em contraponto ao grupo militar.

A escalação do time de ministros também deixou muito a desejar. A nomeação de personagens erráticos como Abraham Weintraub, Ricardo Salles e Ernesto Araújo é prova disso. Na direção inversa, gente que parecia mais sensata, como Gustavo Bebianno e o general Santos Cruz, durou pouquíssimo tempo no governo.

Houve ainda a postura negligente na área ambiental, a oficialização da subserviência aos Estados Unidos, o endosso aos ataques ao STF e Congresso praticados pelo gabinete do ódio, as ofensas a jornalistas e por aí vai.

Esse estilo delimitou o grupo de apoiadores do presidente a cerca de 30% da população, segundo as pesquisas. Ele parecia estar confortável no seu nicho.

Foi então que surgiu a pandemia do coronavirus.

O presidente resolveu subestimar o problema — não por acaso, justamente como Donald Trump fez nos Estados Unidos. Trump mudou de posição, Bolsonaro, não.

Essa atitude transformou a manifestação de domingo passado em um ponto de inflexão. Além de ajudar a convocar para o ato golpista sugerido pelo general Augusto Heleno (lamentavelmente diagnosticado hoje com o coronavírus), o presidente, que estava sob suspeita de ter sido contaminado, foi para a galera cumprimentar irresponsavelmente os manifestantes.

A cena chocante, criticada por todas as pessoas de bom senso, agradou ao punhado de radicais ensandecidos que compareceu aos atos e foi elogiada nas redes sociais pelos robôs. Analistas de internet detectaram, no entanto, que mesmo bolsonaristas de primeira hora reprovaram o gesto. Grupos que nunca tinham criticado o presidente não gostaram nada da performance.

Ontem, quis passar descontração justamente nesse momento de grande temor. Disse que fará uma "festinha" para comemorar o seu aniversário e o da mulher, Michelle, e voltou a tratar o enorme problema do coronavirus como "histeria". Deu pouca importância ao fato de que a vida de muitos idosos (mas não só as deles) está em risco. Fez até uma comparação infeliz entre os velhinhos da Itália e os de Copacabana.

Esse foi o estopim dos protestos. O panelaço voltou, ecoando em áreas onde teve boa votação, como os bairros de Higienópolis, em São Paulo, ou Copacabana (a pequena Itália, segundo ele), no Rio.

Apesar de tantos sinais de que a maré está virando, continua no roteiro da insanidade: ao invés de seguir as recomendações técnicas do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o presidente exige que o responsável pela pasta se alinhe ao seu comportamento irresponsável na abordagem do coronavirus.

Ao governar somente para os radicais que se alimentam das redes sociais, Jair Bolsonaro esqueceu que o mundo real, daqueles que se matam de trabalhar para garantir a subsistência, é muito maior que o virtual.

Protestos espontâneos como os de ontem deveriam ensinar ao presidente algo que qualquer pessoa em sã consciência já sabe: robôs não batem panelas. Quando os gritos e o som de metal ecoam nas janelas, é sinal que tem gente de carne e osso muito insatisfeita por aí.