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Grupo faz vaquinha para desapropriar Casa da Morte, símbolo da ditadura
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A grande casa de dois andares localizada no bairro Caxambu, em Petrópolis, região serrana do Rio, tem um passado que não combina em nada com o clima bucólico do lugar. Naquele imóvel, pelo menos 22 pessoas que se opuseram à ditadura militar instalada no Brasil em 1964 foram torturadas, estupradas e mortas por agentes do Estado. Por isso, há décadas é conhecida como Casa da Morte.
De todos os opositores do regime que passaram pelas mãos dos torturadores naquele lugar, só uma pessoa escapou com vida: Inês Etienne Romeu, presa por participar da organização armada Var-Palmares. Antes de sair, ela sofreu sevícias de todo tipo. Foi sodomizada, submetida a choques elétricos, obrigada a andar de quatro e sujeitada a outras barbaridades.
Anos depois, Inês ajudou a localizar a central de torturas e também identificou alguns dos algozes. Ela morreu em 2015.
Contrariando a ideia de que os horrores da Casa da Morte devem ser esquecidos, um grupo quer manter bem viva a memória das atrocidades praticadas naquele local. "Nosso lema é 'nenhuma cumplicidade com a amnésia histórica'", diz a jornalista Márcia de Almeida, coordenadora do Grupo Inês Etienne Romeu, que tem o objetivo de recolher a quantia necessária para efetivar a desapropriação e transformar o imóvel em um Centro de Memória.
Para ela, essa é uma forma eficaz de a sociedade lembrar que, além de cercear direitos e impedir o livre funcionamento das instituições, a ditadura militar patrocinava práticas criminosas e covardes como as sofridas por Inês. Algo bem diferente da "pacificação" citada na ordem do dia publicada ontem pelo novo ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, para "celebrar" os 57 anos do golpe.
O decreto de desapropriação da Casa da Morte foi assinado em novembro de 2019 pelo prefeito de Petrópolis, mas sem destinação de recursos para ressarcimento dos donos do imóvel. É esse dinheiro que o grupo agora pretende amealhar, através de uma campanha de doações.
A iniciativa começaria no ano passado, mas a pandemia obrigou que fosse adiada. Agora, mesmo com a crise do coronavírus ainda fora de controle, será retomada. Além das doações de brasileiros que se interessem pela causa, um pedido de ajuda financeira será encaminhado a Michelle Bachelet, responsável pela Comissão dos Direitos Humanos da ONU.
A jornalista se tornou amiga de Inês Etienne Romeu depois de entrevistá-la. Conviveu com ela até sua morte e hoje dedica quase todo o seu tempo a tentar transformar em realidade o Centro de Memória.
O plano é que as novas gerações saibam das atrocidades que foram cometidas ali, reveladas graças à coragem e à inteligência de Inês. Ela acabou libertada depois de fazer os torturadores acreditarem que poderia atuar como colaboradora infiltrada em grupos de esquerda. Foi presa depois, mas com seu paradeiro conhecido publicamente, não foi mais torturada.
Ao sair da prisão, localizou a Casa da Morte com a ajuda do jornalista Antonio Henrique Lago. A partir daí, além do endereço foram revelados muitos crimes cometidos. Algo entre 22 e 40 militantes políticos foram torturados, estuprados e mortos naquela casa. Os corpos foram esquartejados e depois incinerados.
Para se ter uma ideia dos abusos que Inês sofreu na casa de Petrópolis, causadores de graves sequelas físicas e psicológicas, são ilustrativos os trechos a seguir, extraídos do relatório que ela entregou à OAB, em 1979:
"Dr. Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando-me pelos cabelos. Depois, tentou estrangular-me e só largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça. Colocavam-me completamente nua, de madrugada, no cimento molhado, quando a temperatura estava baixíssima".
"Por não ter me matado, fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, 'telefones', palmatórias. Espancaram-me no rosto até ficar desfigurada. (?) 'Márcio' invadia minha cela para 'examinar' meu ânus e verificar se 'Camarão' havia praticado sodomia comigo".
Os relatos de Inês levaram os crimes cometidos na Casa da Morte ao conhecimento geral. Resultaram na responsabilização de vários agentes públicos pela Comissão da Verdade.
Além disso, no início de março o Tribunal Regional Federal da 2ª Região aceitou denúncia contra um de seus torturadores, o sargento Antônio Waneir Pinheiro de Lima, conhecido como "Camarão". Ele é o primeiro brucutu dos anos de chumbo a se tornar réu, por tortura e estupro.
Os crimes cometidos naquele lugar serão abordados em livro que está sendo finalizado pela jornalista Juliana Dal Piva, colunista do UOL. Ela pretende mostrar como a cúpula da ditadura militar montou o local clandestino para torturar e matar presos políticos. "A história da Casa da Morte comprova como, além de quem servia lá, os generais também foram diretamente responsáveis por crimes horríveis", explica Juliana. "Se alguém achava ainda que foi coisa de um grupo, sem conhecimento da cúpula do governo e do Exército, o livro vai mostrar que não".
Tudo o que se sabe sobre o que aconteceu ali é consequência da determinação de Inês. A criação do Centro de Memória serviria como referência do local que se tornou tristemente histórico. "Se morrer depois que atingir esse objetivo, está de bom tamanho", diz Márcia de Almeida.
Seja como for, os agentes da ditadura que torturaram e mataram suas vítimas naquele local, acreditando que nunca seriam expostos aos brasileiros, não conseguiram seu objetivo.
Por causa da coragem de Inês Etienne Romeu, uma das passagens mais vergonhosas do período histórico que o ministro Braga Netto tanto quer celebrar foi trazida à luz.
Apesar de todo sofrimento na mão dos torturadores, no final da história foi Inês quem saiu vitoriosa.
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