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Chico Alves

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Crimes do governo Bolsonaro na pandemia não podem ser medidos em reais

10.jun.2021 - O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante evento no Palácio do Planalto - Adriano Machado/Reuters
10.jun.2021 - O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante evento no Palácio do Planalto Imagem: Adriano Machado/Reuters

Colunista do UOL

02/07/2021 13h31

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Não é de hoje que as maracutaias marcam a história do Brasil. Desde 1808, quando Dom João VI ocupou o terreno de um traficante de escravos para instalar a Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, em troca da concessão de um título de nobreza ao sujeito, as grandes tramoias começaram a ser praticadas por aqui. Em meados do século passado, porém, com a ajuda dos meios de comunicação, a palavra "corrupção" ganhou o poder de mobilizar massas e desestabilizar governos.

Presidentes como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Fernando Collor, Lula, Dilma Rousseff e agora Jair Bolsonaro foram abalados por acusações de corrupção, com ou sem provas.

Talvez por isso, nas últimas semanas a CPI da Covid tenha se dedicado com tanto afinco a esmiuçar os fortes indícios de mutreta na negociação da vacina indiana Covaxin. A cada depoimento se torna mais frágil o discurso de integrantes do governo de que não há corruptos entre eles. Mesmo os militares do Palácio do Planalto, que se imaginam mais honestos que os civis, mostram-se tão falíveis como qualquer ser humano sem farda (como qualquer pessoa de bom senso já sabia).

Fatos importantes de hoje contrariam ainda mais esses mitos.

A Procuradoria-Geral da República pediu ao Supremo Tribunal Federal a abertura de inquérito para apurar se o presidente Bolsonaro cometeu crime de prevaricação no caso da negociação da Covaxin, um rolo de R$ 1,6 bilhão.

Em outra frente, o ex-ministro Eduardo Pazuello, general da ativa, foi denunciado pelo Ministério Público Federal por improbidade administrativa. O MPF cita, entre outros delitos, a omissão na compra de vacinas e a adoção do ineficaz "tratamento precoce". Pede R$ 122 mil de ressarcimento ao Erário, mais multa.

Não há dúvida que desfazer mistificações é algo importante e que a CPI sabe que demonstrar corrupção ajuda a sacudir a população abduzida por esse tema.

Não se pode, porém, colocar em segundo plano os crimes contra a saúde pública que foram e continuam a ser cometidos pelo governo e pelo presidente durante a pandemia, à vista de todos. Provar o cometimento de delitos que causaram e continuam causando a morte de milhares de brasileiros é a apuração mais fácil de todos os tempos. Basta olhar o noticiário para encontrar testemunhos e materialidade.

Um bom exemplo é a entrevista da enfermeira Francieli Fontana, concedida à jornalista Natália Cancian e publicada hoje na Folha de S. Paulo. Responsável pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) nos últimos dois anos, Francieli pediu demissão do cargo por considerar que as declarações do presidente da República causam incontornáveis prejuízos à estratégia de vacinação do país.

"Quando se tem certeza de que vacina é o meio mais efetivo para conter a epidemia, junto com as medidas não farmacológicas, e tem comunicação diferente do líder da nação, isso traz prejuízo para a campanha de vacinação", explicou ela, referindo-se à persistente campanha de descredibilização dos imunizantes empreendida por Bolsonaro.

Ontem, no mesmo dia em que Francieli dava a entrevista, o presidente fez mais uma de suas costumeiras lives e atacou a CoronaVac. Leu uma notícia sobre casos de infecção da variante Delta entre populações vacinadas e concluiu: "Abre logo o jogo que tem uma vacina aí que infelizmente não deu certo. Abre logo o jogo. Eu estou aguardando aquele cara de São Paulo falar". A alusão óbvia era ao governador paulista João Doria (PSDB).

"Não deu certo essa vacina dele infelizmente no Chile. Aqui no Brasil também parece que está complicado. Torcemos para que essas notícias não estejam certas, parece que infelizmente não deu muito certo", arrematou, deixando claro que sua expectativa é inversa. Por mais cruel que possa soar, o presidente do Brasil torce para que uma vacina contra a covid-19 não dê certo.

A asneira é facilmente derrubada pelos fatos, como o estudo feito na cidade paulista de Serrana, onde as mortes por coronavírus despencaram. Ou a constatação de especialistas chilenos de que hoje 85% dos internados em UTIs são pessoas que não tomaram as vacinas.

Além de propagar mentiras contra as vacinas, Bolsonaro faz mais. "Solicitei diversas vezes uma comunicação em relação às ações de vacinação e pouquíssimas vezes fui atendida", relata Francieli Fontana. Ou seja, enquanto o presidente faz campanha negativa contra os imunizantes, o Ministério da Saúde se mostra alinhado com o chefe maior e não tem estratégia eficaz de comunicação.

Francieli critica ainda a absurda declaração do presidente de que aqueles que receberam vacina já poderiam deixar de usar máscara - o que todos os especialistas dizem que não é verdade.

"Qualquer programa de vacinação no mundo, para ter sucesso, precisa de vacina e comunicação, e não tive nenhum dos dois", declarou a ex-responsável pelo PNI.

Se somarmos a isso a propagação do chamado tratamento precoce, o atraso deliberado na compra das vacinas e as declarações do presidente questionando o uso de máscara, resta alguma dúvida de que Bolsonaro e muitos de seu governo tiveram participação decisiva na morte de multidões de brasileiros por covid-19?

Não se pode contestar que a corrupção é um mal gravíssimo e que nesse item o atual governo é tão suscetível como qualquer outro (com a diferença que, como o próprio presidente falou, maracutaia com recursos da saúde em meio à pandemia é bem mais grave). Mas há prejuízos bem maiores que a tunga de dinheiro público.

A ocorrência massiva de mortes que poderiam ter sido evitadas é um bom exemplo disso.

Ao contrário da crença que se disseminou no Brasil nas últimas décadas, aprendemos tragicamente que nem todo o crime grave dos governantes pode ser medido em reais.

Basta perguntar aos que perderam parentes ou amigos em meio ao negacionismo de Bolsonaro para ter certeza disso.