Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.
Luta contra autoritarismo em Israel é lição para o Brasil, diz sociólogo
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
É cada vez maior o número de israelenses que estão indo às ruas contra a reforma judiciária proposta pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. A mobilização, de dimensão inédita, é reação ao projeto autoritário do governante - a aprovação da reforma permitiria a Netanyahu passar por cima das decisões do Supremo Tribunal Federal de Israel.
A resistência da sociedade civil surpreendeu o primeiro-ministro, que ontem comunicou o adiamento da votação da proposta. No entanto, a anunciada mobilização de grupos de extrema direita a favor da reforma pode provocar conflitos violentos. Alguns temem até uma guerra civil.
"Não, absolutamente não é exagero", diz Michel Gherman, professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante do Instituto Brasil-Israel, sobre a possibilidade de guerra civil. "É uma possibilidade concreta".
Gherman é um dos participantes da conferência internacional "Israel como modelo cultural - imaginários e usos da nova extrema direita", que começa hoje no Rio.
Para ele, a sociedade civil israelense está mostrando uma força fora de série — algo que pode servir de exemplo à luta contra a extrema direita no Brasil. O episódio também prova a importância da formação de uma frente ampla contra os direitistas radicais. Ele analisa a situação política de Israel em entrevista à coluna:
UOL - O que é a reforma do Judiciário que Benjamin Netanyahu está querendo implantar e está sendo tão rejeitada pelos israelenses?
Michel Gherman - Há muitos anos, Netanyahu tem um projeto do que ele chama de reforma judiciária. Em última instância é a possibilidade de controle das estruturas judiciárias de poder e alteração do sistema de pesos e contrapesos do Estado democrático.
Ele é um político muito habilidoso, que consegue formar e articular base de apoio dentro do Parlamento, mas que não consegue alterar, por conta de uma estrutura de poder baseada nesse equilíbrio, as decisões do Supremo Tribunal Federal de Israel. Além disso, Netanyahu é um alvo desse sistema judiciário, porque ele está sendo acusado de corrupção em um processo muito longo. Ele percebe o Supremo de Israel como uma ameaça a ele e à sua estrutura de poder.
O que ele fez nas últimas eleições foi se aproximar de setores da extrema direita, que inclui grupos neofascistas e inclusive neonazistas, colocá-los no Parlamento e, por causa da maioria que conseguiu, faz avançar esse projeto.
Ou seja, o projeto de Netanyahu é conseguir poder para passar por cima das decisões do Supremo.
Israel é um Estado Parlamentar sem Constituição. Quem daria a palavra final seria o governo, por maioria na Câmara. Em última instância seria um projeto de construção de uma ditadura parlamentar, onde quem tem maioria pode exercer o seu poder sem limites.
Que tipo de projeto político a extrema direita quer implantar com essa reforma?
São três elementos. O primeiro é ligado a uma política moral, o combate aos grupos LGBTQIA+, combate ao feminismo, combate ao Estado secular e laico.
A segunda referência tem a ver com a estrutura de poder da ocupação dos territórios palestinos. São a favor da expansão nos territórios palestinos, construção de colônias e tudo mais.
O terceiro projeto dá privilégios aos grupos ultrarreligiosos, como garantia de que não vão estudar certas matérias, não precisarão servir ao Exército e terão descontos muito grandes nos impostos. É o projeto de um Estado militarizado, religioso e com grupos isolados muito poderosos.
Não é também um caminho aberto para a corrupção?
Ultimamente, Israel tem caído bastante no nível de controle da corrupção, por conta da própria presença de Netanyahu. Essa reforma possibilitaria que a corrupção corresse mais solta, sem os controles típicos do Estado.
Um dos aliados de Netanyahu não poderia ser ministro porque ele é condenado por corrupção. Pois Netanyahu fez passar uma lei que possibilita que acusados de corrupção possam ser nomeados ministros. Na ausência do Supremo, essa lei passaria tranquilamente. Ele quer coisas assim.
Essa reforma conseguiu reunir contra si tanto a esquerda como a direita que não é radical?
Já vimos reação popular na Hungria, na Polônia, nos Estados Unidos e no Brasil, mas em última instância a reação da sociedade civil de Israel é muito mais poderosa, é fora de série. Quem está reagindo? Aqueles grupos que acreditam na democracia liberal, inclusive o Likud (partido político israelense que congrega a centro-direita e a direita conservadora). Eles percebem que haverá descontrole do Estado, então reagem.
O ministro da Defesa disse que a reforma seria uma ameaça à segurança de Israel, então Netanyahu o demitiu. Mesmo aqueles grupos ligados à defesa nacional, militarizados, de direita, também reagiram.
É verdade que até mesmo antigos agentes do Mossad (serviço secreto israelense) estão reagindo contra a reforma?
Não só os do passado como os atuais também. Todos os líderes do Mossad dos últimos 20 anos disseram a mesma coisa: é um consenso o risco à segurança se essa reforma passar.
Também houve muitos convocados que se recusaram a servir nas Forças Armadas. Mas o que desequilibra o Exército de Israel não são os grupos ligados ao serviço militar obrigatório, mas a elite treinada que continua até os 50 anos fazendo o serviço voluntário. São os aviadores, os comandos, que não são obrigados a servir. Então, se eles saem não há uma deserção. Eles estão dizendo que não podem mais servir como voluntários a um governo autoritário, ditatorial, Isso é muito grave. Estou falando da elite da elite do Exército de Israel.
É um risco muito grande à segurança do país.
É uma reação inédita?
Nunca se viu na igual, só aumenta. Começou com manifestação centrada na classe média de Tel Aviv, depois se espalhou por várias cidades. É uma situação absolutamente sem precedentes. Desde janeiro só há aumento e não diminuição, como Netanyahu apostava. E no domingo chegou a nível de rebelião popular.
É verdade que há risco de uma guerra civil ou isso é exagero?
Não, absolutamente não é exagero. Quem está falando em guerra civil é o partido do presidente de Israel, do chefe do Parlamento, do chefe da oposição, analistas. É uma possibilidade concreta.
Hoje, por exemplo, grupos de extrema direita ameaçam fazer manifestações contrárias, inclusive com embate físico. Então, guerra civil é uma situação que está no horizonte. E o horizonte está se aproximando cada vez mais.
Qual é a saída para Netanyahu?
Não sei se tem saída. Se ele recua, a tendência é o governo cair. Se ele avança, a tendência é a inviabilização. Netanyahu passou um pouco da linha, eu não sei se pode recuar. Só se for para ganhar tempo. O adiamento da crise é que está dado, não a resolução da crise. Ele não tem condições práticas de negociação, as rupturas foram muito grandes. A única opção é a queda do governo e a formação de uma outra coalizão, onde teremos tensionamentos de uma outra ordem.
Acha, então, que Netanyahu vai perder a batalha?
Ele já perdeu a batalha. A sociedade civil israelense deu uma demonstração de força que ele não esperava. Estou falando de uma greve organizada pela central sindical e pela central dos patrões. Ninguém esperava isso. Netanyahu apostou no silêncio e recebeu uma reação que nunca houve em Israel. Então, ele já perdeu a batalha. Não tem condições de manter essa reforma. Mas ele tem condições de recuar sem perder o poder? E perder o poder agora significa o quê? Acho que ele não tem como sair disso.
Por quais motivos os brasileiros devem prestar atenção no que acontece em Israel?
Israel produziu há cerca de dois anos e meio atrás uma aliança muito geral e ampla de partidos de direita e de esquerda e de partidos árabes, mas todos vinculados à democracia israelense. A defesa da democracia era o mote.
A eleição desse governo de extrema direita com tendência neofascista se deu por uma diferença de 50 mil votos, porque teve um racha nos setores de centro-esquerda de Israel. O partido trabalhista e o partido socialista não aceitaram fazer uma frente. E foi justamente isso que possibilitou a formação do governo de extrema direita.
Na minha opinião, o inimigo de todas as correntes é a extrema direita. É preciso uma aliança e uma frente ampla das correntes liberais e democráticas contra eles. A extrema direita funciona muito bem quando a frente ampla leva a sério demais as contradições pontuais. É preciso se unir, sob o risco de acontecer aqui o que está acontecendo em Israel hoje.
Outro ponto: é preciso entender a importância da sociedade civil. É isso, a sociedade civil, que vai evitar a tragédia e o colapso do Estado de Israel. Sem isso, não teríamos a possibilidade de a oposição fazer essa resistência.
Mas na última eleição houve a frente ampla contra a extrema direita representada por Bolsonaro.
Aqui no Brasil, a frente ampla poderia ter-se formado no primeiro turno da eleição presidencial e a gente poderia ter evitado 8 de janeiro. Quanto ao segundo ponto, as jornadas de junho produziram uma espécie de medo na sociedade civil. É preciso recuperar isso. Em Israel, é a sociedade civil que pode salvar o Estado.
Outro paralelo importante: quem produziu essa reforma foi um grupo chamado Forum Kohelet, um grupo de empresários e intelectuais de extrema direita, que a partir do financiamento de pesquisa e do apoio financeiro a um grupo de deputados produziu uma perspectiva sobre o Estado autoritário e ultraneoliberal. É basicamente o que aconteceu no Brasil com grupos como Milenium, por exemplo. É preciso também estabelecer uma relação profunda não só com a sociedade civil, mas também com intelectuais que possam estabelecer relação com deputados, ou então eles vão ficar somente na mão da extrema direita.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.