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Entendendo Bolsonaro

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

No aniversário da fala da 'gripezinha', ela mata 300 mil brasileiros

24.mar.2020 - O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante pronunciamento em rede nacional - Isac Nóbrega/PR
24.mar.2020 - O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante pronunciamento em rede nacional Imagem: Isac Nóbrega/PR

Colunista do UOL

24/03/2021 16h51

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* Rafael Burgos

Quis o destino que a marca de 300 mil mortos pela covid-19 no Brasil tenha sido atingida no mesmo dia em que se completa o aniversário de um ano do pronunciamento da 'gripezinha', feito por Jair Bolsonaro em 24 de março de 2020.

No momento em que o país se consolida como ameaça sanitária global, contar a história de como chegamos até aqui se confunde com a desagradável tarefa de pontuar as ideias fixas do presidente brasileiro.

Quando Bolsonaro se dirigiu pela primeira vez à nação desde que, duas semanas antes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia declarado a pandemia de covid-19, ainda eram escassas as informações acerca da doença.

Experiências pregressas de combate a outros coronavírus, sobretudo no continente asiático, orientaram tomadas de decisões à medida que o mundo começava a conhecer melhor os efeitos do Sars-CoV-2, causador da covid-19.

Na noite do dia 24 de março, Bolsonaro não era, portanto, o único chefe de Estado com ideias equivocadas sobre o combate à pandemia. Como a essa altura já se conhece, casos emblemáticos vêm à tona.

Em 27 de fevereiro, o prefeito de Milão, Giuseppe Sala, divulgou em suas redes a campanha 'Milão não para', indo na contramão de medidas restritivas para contenção do vírus que começavam a ser adotadas na Itália. Na época, a Lombardia, região onde fica Milão, registrava 258 pessoas infectadas pelo vírus, e o país inteiro contabilizava 12 mortes.

Um mês depois, a Itália sucumbia ao vírus, com um colapso de seu sistema de saúde. Mundo afora, a Lombardia estampava a capa de jornais, sinalizando que o pior poderia acontecer caso não estivéssemos preparados.

Para quem observava de fora, o drama italiano oferecia elementos fundamentais do que não deveria ser repetido no combate à pandemia, algo crucial para países que ainda dispunham de tempo para se organizar antes da tempestade chegar.

Em consonância com este processo de aprendizado, o prefeito de Milão, um mês após a sua declaração, admitiu o erro de ter apoiado a campanha contra a paralisação dos serviços na cidade.

Ainda na Europa, outro caso emblemático: em meados de março de 2020, o Reino Unido chamava a atenção do noticiário internacional por adotar uma estratégia diferente de enfrentamento da covid: a imunidade de rebanho.

Enquanto toda a Itália estava em quarentena, a França ordenava o fechamento de locais públicos não essenciais e a Espanha decretava estado de emergência por 15 dias, o governo britânico, capitaneado pelo primeiro-ministro Boris Johnson, defendia que pessoas com o sintoma da doença deveriam ficar em casa por uma semana e que o restante da população deveria tocar suas vidas normalmente, usando o transporte público, frequentando escolas, universidades, espetáculos e restaurantes.

Como registrado nesta coluna, a orientação foi abandonada quatro dias após anúncio oficial, diante de estudo do Imperial College que projetava a morte de até 250 mil pessoas como consequência de tal política. Semanas depois, e após passar pela experiência de internação na UTI em razão da covid, Johnson viraria a chave de modo definitivo, trilhando, desde então, um caminho que causa inveja a boa parte do planeta.

Antes protagonista de falas negacionistas sobre o vírus, o primeiro-ministro britânico hoje comanda um dos países líderes na rota de fuga da pandemia. Com metade de todos os adultos já vacinados na primeira dose, e diante de um ritmo recorde de imunização, a expectativa é de que o Reino Unido atravesse o verão europeu em clima de 'retorno à normalidade'.

Encerrando a nossa lista de exemplos, cabe citar a OMS, considerando os diversos casos em que o órgão modificou suas recomendações para enfrentamento do vírus durante este período de um ano.

Desde o uso de máscaras em público por pessoas saudáveis, passando por orientações acerca da testagem até a quantidade de dias de isolamento, diversas imprecisões foram corrigidas, levando a mudanças nas orientações passadas à comunidade internacional no percurso da pandemia.

Como dissemos anteriormente, a escassez de informações acerca do novo coronavírus e a total ausência de tempo para uma preparação adequada fizeram com que parte fundamental do conhecimento aplicado neste período tenha sido aprimorado conforme a experiência da pandemia indicava erros e acertos. E é neste aspecto particular, na relação com a experiência, que reside uma peculiaridade brasileira.

As ideias fixas de Bolsonaro

Quando revisitamos com atenção as palavras ditas por Jair Bolsonaro na noite do dia 24 de março de 2020, percebemos que, embora as previsões otimistas ali enunciadas tenham fracassado de modo colossal, algumas das ideias-chave que as motivaram, um ano depois, ainda habitam a cabeça do presidente brasileiro.

[Os meios de comunicação] espalharam exatamente a sensação de pavor (...). O cenário perfeito, potencializado pela mídia, para que uma verdadeira histeria se espalhasse pelo nosso país

Sem pânico ou histeria, como venho falando desde o princípio, venceremos o vírus e nos orgulharemos de viver nesse novo Brasil

Àquela altura, Bolsonaro bradava que, mais grave do que o vírus, seria a "histeria" provocada pela imprensa diante da chegada da covid, que, segundo ele, passaria "brevemente".

Em conversa com apoiadores quase um ano depois, no dia 3 de março de 2021, já em meio ao iminente colapso hospitalar em todo o país, o presidente não parecia pensar diferente acerca da histeria. "Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos. Mas você não pode entrar em pânico. Que nem a política, de novo, do 'fique em casa'. O pessoal vai morrer de fome, de depressão?", frisou, em vídeo divulgado nas redes sociais.

Um dia depois, em sua live semanal, Bolsonaro insistiu: "Eu lamento qualquer morte, mas parece que só morre gente de covid no Brasil. Outras pessoas estão morrendo por outras doenças porque ficam em casa com medo, com pavor. O vírus do pavor foi inoculado nessas pessoas".

As declarações vão na linha do que disse o então ministro Pazuello em dezembro de 2020, por ocasião do evento que lançou o Plano Nacional de Imunização, no Palácio do Planalto. "Para que essa ansiedade, essa angústia?", perguntou Pazuello, diante da pressa para o começo da vacinação no Brasil.

O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Por que fechar escolas? Raros são os casos fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos de idade

Diante da chamada "segunda onda da pandemia", profissionais de saúde em todo o país têm registrado uma severa mudança no perfil etário dos internados pela doença. Após as aglomerações de fim de ano, e diante de uma variante mais contagiosa, pessoas abaixo de 60 anos representam uma porção cada vez maior dos atingidos pela covid no Brasil. Mas, para Bolsonaro, nada mudou.

Na mesma live do dia 4 de março, em que acusou brasileiros de terem "frescura" e ficarem de "mimimi" (sic), Bolsonaro fez uma defesa implícita do isolamento vertical, argumento levantado um ano atrás segundo o qual apenas os idosos deveriam ficar em isolamento social. "Chega de frescura e de mimimi, vão ficar chorando até quando? Temos que enfrentar os problemas, respeitar obviamente os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades. Mas onde vai, onde vai parar o Brasil se nós pararmos?", afirmou o presidente.

A defesa do isolamento vertical já se revelava um despropósito mesmo quando do discurso da 'gripezinha'. O que espanta, entretanto, é como a mudança no perfil dos atingidos em nada alterou a visão de mundo do presidente. Um ano se passou, mas é como se, em sua cabeça, suas ideias jamais envelhecessem.

Enquanto estou falando, o mundo busca um tratamento para a doença. O FDA americano e o Hospital Albert Einsten, em São Paulo, buscam a comprovação da eficácia da cloroquina no tratamento do covid-19. Nosso governo tem recebido notícias positivas sobre este remédio fabricado no Brasil e largamente utilizado no combate à malária, lúpus e artrite.

Acredito em Deus, que capacitará cientistas e pesquisadores do Brasil e do mundo na cura desta doença

Não parece surpresa constatar a mais celebrada das ideias fixas de Jair Bolsonaro, a cloroquina. À época do pronunciamento do presidente, o medicamento tinha eficácia conhecida para doenças como a malária. Inexistiam testes sinalizando a sua utilidade para o enfrentamento da covid.

Um ano depois, o cenário é bem diferente. Incontáveis estudos publicados em nível nacional e internacional comprovam a ineficácia da cloroquina para tratamento da doença, bem como de sua irmã no ciclo de desinformação bolsonarista, a ivermectina.

Apesar das evidências em contrário, estudo do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), produzido em novembro de 2020, identificou que, mesmo após divulgação de estudos científicos, ambos os remédios continuam a exigir um esforço permanente de agências de checagem de notícias, como consequência da campanha nas redes bolsonaristas — à diferença de praticamente todos os países do mundo.

Como se não bastasse, na última sexta (19), conforme revelou a revista Época, Bolsonaro entrou ao vivo, por telefone, na programação de uma emissora de rádio do Rio Grande do Sul para defender o uso de nebulização de hidroxicloroquina diluída em soro nos pacientes com covid-19.

"Para salvar vidas, vale qualquer coisa. Sabemos que a vacina é um custo bilionário para o mundo todo. E parece que grupos interessados em investir apenas na vacina é que deixam de lado a questão do tratamento preventivo que existe e também o tratamento logo após a contração da doença", disse o presidente.

Uma particular relação com a verdade

Diante de todo esse percurso, e dos exemplos que citamos para ilustrar como outros países lidaram com os próprios erros na condução da pandemia, parece evidente que as 300 mil vítimas de covid-19 decorrem de um ingrediente especialmente brasileiro, e ele está na particular relação que Jair Bolsonaro estabelece com a verdade e com a própria ideia de experiência.

Se somássemos a quantidade de erros cometidos pelo governo brasileiro na condução da pandemia, certamente, estaríamos no pódio. Mas o que faz de nós uma ameaça ao mundo decorre menos do volume de equívocos do que, propriamente, de como lidamos com estes equívocos.

"Eu devo mudar meu discurso? Devo me tornar mais maleável? Devo ceder? Fazer igual à grande maioria está fazendo? Se me convencerem do contrário, faço, mas não me convenceram ainda", afirmou o presidente na última segunda (22).

Em artigo publicado em dezembro de 2020, os pesquisadores Guilherme Casarões e David Magalhães defendem que, em vez de "negacionismo", a atuação bolsonarista na pandemia deve ser classificada como "populismo sanitário". Isso porque, em vez de exatamente negar a ciência, o que o bolsonarismo faz é manipular evidências a serviço de uma narrativa preestabelecida, criando assim uma "ciência alternativa".

No caso de Bolsonaro, este processo de ser convencido do contrário não é um horizonte possível, uma vez que é incompatível com a maneira como o presidente se relaciona com a verdade. O que determina a validade de seus pensamentos não é exatamente o grau em que eles colidem com as evidências, mas uma mera questão de oportunidade política. Bolsonaro muda de opinião não quando é convencido de que errou, mas quando se convence de que a sua estratégia retórica deve mudar.

O que nos torna singulares, portanto, é que rumamos ao precipício sem o consolo de aprender com os nossos erros. Passados 365 dias, o discurso da 'gripezinha' ainda assombra o Brasil e nos põe de joelhos frente a 300 mil corpos, vítimas das ideias fixas de Jair Bolsonaro. Como numa suspensão da História, o país vive o seu eterno presente sem passado.

* Rafael Burgos é jornalista e mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É editor da coluna Entendendo Bolsonaro.