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Entendendo Bolsonaro

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Na CPI, Araújo mente e reitera adesão ao Tradicionalismo de Olavo

17.mai.2021 - À mesa, ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo na CPI da Covid - Jefferson Rudy/Agência Senado
17.mai.2021 - À mesa, ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo na CPI da Covid Imagem: Jefferson Rudy/Agência Senado

Colunista do UOL

18/05/2021 20h07

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* Warley Alves Gomes

Todos conhecemos a história de Pinóquio, o boneco que ganha vida e cujo nariz cresce toda vez que ele conta uma mentira. O ex-chanceler Ernesto Araújo tem a sorte de, embora ter a cara de pau e mentir a todo o tempo, seu nariz não crescer. Caso fosse assim, ficaria inviável não só usar a máscara durante a CPI da Pandemia, como também tentar esconder de todo o país que ele muitas vezes "faltou com a verdade" aos parlamentares que o interrogaram.

No entanto, é verdade que o fato de seu nariz não crescer instantaneamente não foi de grande ajuda no final das contas: desdizer o que foi dito ao longo de mais de um ano não é tarefa fácil quando os registros estão espalhados e podem ser facilmente encontrados nas plataformas digitais. E, na balança da CPI, o que mais pesou já era previsível: seus constantes ataques à China.

Ernesto Araújo abriu sua participação na CPI da Pandemia com uma fala confiante, serena. Disse que o governo Bolsonaro era um governo diferente, com políticas diferentes; trata-se de transformar o Brasil em uma economia moderna, de mercado, o oposto da concepção passada, que era ideológica e partidária; refutou o que chamou de "multiculturalismo mágico" que, na verdade, se pautava por um "pensamento único"; negou que sua forma de conduzir a política externa fosse ideológica, mas reforçou que buscava um "pragmatismo" que levava em conta a "preservação dos valores", que não deveriam ser substituídos por "interesses materiais".

Esse conjunto de palavras quando refletido adequadamente sugere um vazio de sentido. Araújo não disse o que elas efetivamente queriam dizer: o que seria esse "multiculturalismo mágico"?; esse "pensamento único", esses "valores" que deveriam ser "preservados"? A fala de abertura de Ernesto Araújo, na verdade, dava o tom do que seria a participação do ex-chanceler na CPI: mentiras, palavras imprecisas, saídas pela tangente e, no fundo de tudo, um discurso ideológico não apenas cientificamente negacionista, mas fortemente nocivo para os interesses nacionais.

Para desvendar os pontos ocultos do que foi dito por Araújo, é preciso prestar especial atenção a sua posição quanto à China. Nesse sentido, o relator Renan Calheiros (MDB-AL) e os senadores que se posicionam como oposição ao governo Bolsonaro apontaram prontamente para o artigo "Chegou o Comunavírus", publicado no dia 22 de abril no blog Metapolítica 17: contra o globalismo, propriedade do ex-chanceler.

Ernesto Araújo tratou logo de se defender, dizendo que o artigo não se tratava de um ataque à China ou à OMS, mas uma resposta ao filósofo Slavoj Zizek, que havia publicado um livro no qual o coronavírus poderia ser o começo de uma nova ordem mundial, na qual o comunismo prevaleceria.

Se se pode dar crédito a Ernesto Araújo em dizer que seu artigo era de fato uma resposta a Zizek, é preciso ser enfático ao afirmar que Araújo mentiu à CPI. Em seu texto, o ex-chanceler diz explicitamente que Zizek mostra o que vinha sendo preparado desde a queda do Muro de Berlim: que o comunismo não havia desaparecido, mas ganhado nova roupagem, tendo no "globalismo" o caminho para o "comunismo" e que o vírus seria uma imensa oportunidade para acelerar o que Araújo considera "o projeto globalista".

Ressalto que qualquer pessoa que compreenda razoavelmente o funcionamento da língua portuguesa sabe que as palavras "Em suma, Zizek explicita aquilo que vinha sendo preparado há anos..." significam que, ainda que Araújo discorde politicamente de Zizek, ele está de acordo que o filósofo revela algo que estava oculto, i.e., na crença de Araújo, que existe um plano em curso para a implantação do comunismo através do "globalismo".

Acompanhando o raciocínio, Araújo considera que o uso político do vírus é o caminho para a "exponencialização" (nas palavras do próprio ex-chanceler) de todos os outros instrumentos de implementação da nova ordem comunista. Ainda segundo Araújo, esses seriam o "climatismo' ou "alarmismo climático"; a "ideologia de gênero"; o "politicamente correto"; o 'imigracionismo"; o "racialismo"; o "antinacionalismo"; e o "cientificismo".

Toda essa parafernália verborrágica de Ernesto Araújo soa como puro delírio para pessoas suficientemente racionais para compreender que não se trata de políticas de esquerda ou direita, mas de um ataque ao bom senso e à lógica pela qual o mundo busca funcionar desde o século XVIII, muito antes do comunismo existir.

Não é preciso saber o que foi o Iluminismo, basta ter a cabeça no lugar e observar como o mundo gira, ou melhor, que a Terra não é plana, para saber que o que Ernesto Araújo diz não faz sentido. Mas é preciso ir além. As posições alucinadas do ex-chanceler são apenas a ponta do iceberg da presença de uma corrente ideológica conhecida como Tradicionalismo na política brasileira.

É preciso atentar para outro aspecto que apareceu durante a fala de Araújo durante a CPI. O ex-chanceler mencionou brevemente os nomes do youtuber Olavo de Carvalho e de Filipe Martins, assessor internacional da Presidência da República. Os três formam o triângulo principal da chamada "ala ideológica" do governo, nome genérico que mais esconde que revela as perspectivas do Tradicionalismo, que verdadeiramente fundamenta o governo Bolsonaro no plano ideológico. Filipe Martins, é válido lembrar, foi flagrado fazendo um gesto supremacista branco em sessão plenária do Senado Federal no dia 24 de maio do presente ano, o que aumentou as associações do governo Bolsonaro com o nazismo.

A associação de Bolsonaro ao fascismo vem sendo um dos principais pontos defendidos pela oposição ao governo, principalmente pelos setores de esquerda, mas ela é bastante imprecisa, vaga e mesmo equivocada. Benjamin Teitelbaum, em seu livro Guerra pela Eternidade, apontou Olavo de Carvalho como o principal propagador do Tradicionalismo no Brasil. Enquanto corrente ideológica e intelectual, o Tradicionalismo concebe a história humana dividida em ciclos. Em resumo, passaríamos de uma "era dos sacerdotes" para uma "era dos escravos", chamada de Kali Yuga.

Essa era seria marcada por uma intensa preocupação material em detrimento dos "valores espirituais". Qualquer semelhança com as palavras de Ernesto Araújo não são mera coincidência: tanto o ex-chanceler quanto Filipe Martins foram discípulos de Olavo de Carvalho e chegaram ao poder através do guru.

O Tradicionalismo também se pauta pela defesa do fortalecimento das nações em oposição ao "multiculturalismo" que, na verdade, em um mundo globalizado nada mais é que a tentativa de uma nação - comunista, portanto "materialista" - impor ao mundo seus valores, fazendo com que os países dominados abandonassem os seus, levando o "espírito" a ceder aos interesses econômicos.

Quando Ernesto Araújo ataca a China, o faz porque vê nela a representação máxima dessa potência "materialista" que busca implementar seu domínio mundial. Quando Araújo diz que faz "política pragmática" sem "abandonar os valores" que o orientam é no Tradicionalismo que está se pautando.

Teitelbaum, durante uma live coordenada pela Fundação FHC ocorrida no dia 26 de fevereiro de 2021, afirmou que, para alguns Tradicionalistas, o fascismo era demasiado igualitário, modernista, secular, científico e materialista. É por esse tipo de vertente que as relações internacionais brasileiras se pautaram desde a posse de Jair Bolsonaro. Não é apenas um delírio, mas uma doutrina ideológica fundamentada e nociva.

Muito da participação de Ernesto Araújo no governo Bolsonaro ainda precisa ser explicado, assim como o Tradicionalismo investigado. Enquanto o governo se fragiliza e passa a necessitar mais do chamado "Centrão", a "ala ideológica" parece perder força. De qualquer forma, bastante dano já foi feito e investigar o impacto desse tipo de conduta no combate ao coronavírus no Brasil é fundamental para que o país se reorganize politicamente e possa punir os responsáveis pela "política da morte" que foi implementada.

Um dos objetivos da CPI da Pandemia é desvendar quem fazia parte de um "ministério da morte", responsável por orientar Bolsonaro de forma paralela ao Ministério da Saúde. A apuração do relato de Ernesto Araújo na CPI é crucial para dar um passo adiante nessa investigação. Durante todo o tempo, ele se esforçou para negar que atacou a China, bem como qualquer responsabilidade do presidente. Disse desconhecer quem deu essas orientações a Bolsonaro, mas reafirmou atuar todo o tempo em colaboração com o Ministério da Saúde. Ao desejar ocultar fatos ocorridos, Araújo pode ter colocado o governo em água escaldante.

A mentira, como diz o ditado, tem pernas curtas e o ex-chanceler não teve para onde correr quando todos estavam cientes do que ele disse e fez enquanto ocupou o cargo de chanceler. O nariz do nosso Pinóquio não cresceu. Felizmente, nenhum artifício mágico foi necessário para revelar as mentiras que foram ditas. Bastava um clique.

* Warley Alves Gomes é mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente leciona no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais - Campus Avançado Arcos. Também se dedica à escrita literária, tendo estreado com a publicação do romance O Vosso Reino, em 2019.