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Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

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Internação de Bolsonaro revela nosso pior lado enquanto país

Colunista do UOL

15/07/2021 17h39Atualizada em 16/07/2021 10h48

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* Warley Alves Gomes

A internação do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pegou a todos de surpresa. Ao que parece, o fato foi inesperado mesmo para sua família, como afirmou seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ). Segundo ele, o encaminhamento do pai para a UTI não era "nada grave", mas apenas uma medida de "precaução".

O caso logo me remeteu à internação de outro ex-presidente, o ditador Costa e Silva, que ocupou o poder entre 1967 a 1969. O que a princípio foi noticiado como uma internação passageira logo resultou em um afastamento definitivo do cargo, pois Costa e Silva teve um derrame cerebral. Apesar dos esforços do regime militar para ocultar o estado de saúde, o fato é que, nessa ocasião, como em outras, a doença se fez uma verdade impositiva.

Não quero aqui especular qual o real estado de saúde do presidente. Não sou médico, nem tenho afeição por teorias da conspiração, salvo quando elas fazem parte de algum universo ficcional. A questão é que a fala do filho do presidente evidencia uma característica grave desse governo: a falta de transparência. Quando Flávio Bolsonaro diz "foi para a UTI, mas não é grave", a dúvida logo desponta, pois neste governo nada é feito às claras, como bem demonstra o caso do combate à pandemia de covid-19.

A referência a Costa e Silva não foi gratuita e aponta para outra questão intrínseca ao governo de Jair Bolsonaro: a forte presença dos militares em cargos oficiais. Essa relação logo leva a outro problema, pois a transparência e a democracia não são da "natureza" das Forças Armadas.

Não se trata de fazer um ataque a elas, mas de evidenciar que suas principais funções são atuar em conflitos bélicos e proteger o território nacional. Em ambos os casos, a hierarquia e a obediência se fazem necessários, enquanto "democracia" e "transparência" são dispensáveis e podem mesmo atrapalhar. Imagine se os generais, ao tramarem suas estratégias, discutissem cada caso com toda a tropa e colocasse as pautas em votação. Claro que não funcionaria.

O contrário também parece válido. Suspeitas como as que agora envolvem o Ministério da Saúde, fortemente militarizado, vão ao encontro desse raciocínio. Se tais suspeitas serão confirmadas ou não, é outra história.

Não se pode esquecer que o próprio presidente tem formação militar e, embora tenha sido reconhecido como um "mau militar" no passado, chegando a ser acusado de planejar a explosão de bombas em instalações militares e tendo sua carreira encerrada antes do tempo por indisciplina, não se pode ignorar que Bolsonaro incorporou grande parte das características intrínsecas às Forças Armadas.

Antes, se o presidente falha no critério da disciplina, ele parece encarnar algumas contradições das instituições militares: incompatibilidade com a democracia, falta de transparência e ingerência em questões civis. Se tais características funcionam bem em um estado de guerra, não servem para o exercício do poder. O "capitão", ao que parece, não serve para nenhuma das duas coisas.

Mas a dúvida suscitada pela declaração de Flávio Bolsonaro está arraigada em outra característica estrutural do governo: a mentira. Se é verdade que a simulação faz parte da política, o clã Bolsonaro parece levar isso a outro patamar. Eleito com base em um esquema industrial de disparo de fake news, a mentira está para o governo como a gasolina e o álcool estão para o carro do contribuinte —elas estão saindo muito caras, por sinal.

Uma rápida busca pela internet nos revela que essa é a palavra mais associada ao presidente: Bolsonaro "mentiu sobre a covid"; "mentiu sobre o Mercosul"; "mentiu sobre Barroso" etc. Enquanto o desenvolvimento econômico prometido pelo governo não chega, as mentiras são entregues aos milhões.

Mas pode-se mesmo dizer que, no caso do governo, a mentira tem sido mais contagiosa que o vírus. Na CPI, mentiram o ex-chanceler Ernesto Araújo; o ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello; e o ex-secretário de Comunicação da Presidência da República Fabio Wajngarten. O deputado federal, Osmar Terra (MDB-RS), investigado por ser um dos responsáveis por formar o "gabinete paralelo" de combate à pandemia, também mentiu diversas vezes.

Se para a covid-19 já temos uma variedade de imunizantes, para o vírus da mentira que assola o governo essa solução está longe de ser alcançada. Jair Bolsonaro e seu clã levaram a mitomania para o Palácio do Planalto. Dizem as más línguas que ela só sai de lá quando o presidente sair.

Poderíamos até sentir certa pena do presidente e seus aliados, tão acometidos por essa enfermidade até então sem cura, mas aí entra um outro elemento que o governo Bolsonaro disseminou pelo país que, a meus olhos, é o mais grave deles: a falta de empatia.

Se na época das eleições o presidente fazia declarações nada republicanas, que remetiam ao contexto da ditadura —tais como "fuzilar a petralhada" e mandar os "inimigos" para a "ponta da praia"—, a coisa descambou quando a pandemia chegou ao Brasil. Qualquer brasileiro tem em mente a série de palavras que o presidente associou ao vírus: "gripezinha", "coisa de maricas", "mimimi". Além disso, não faltaram frases desrespeitosas em relação às mortes, como "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?".

Tais "pronunciamentos" voltaram-se contra o presidente agora e estão sendo disseminados nas redes sociais. No campo progressista, onde o direito à vida sempre se destacou como um valor quase absoluto, as recordações de frases pouco empáticas ditas pelo presidente nos últimos anos vieram acompanhadas de ataques à sua conduta e uma nada discreta torcida pelo seu falecimento. Com um toque de humor, a crítica não poderia ser mais mórbida.

As reações de ironia ao estado de saúde de Bolsonaro podem mesmo chocar alguns de nós, mas fato é que elas são resultado não só do ódio político que vigora no país, mas também da completa ausência de empatia demonstrada pelo presidente nos últimos anos. E é por isso que a coisa é grave: o governo Bolsonaro abriu um parênteses moral no país.

Não se trata de defender compreensões estereotipadas e errôneas sobre o perfil psicológico do "brasileiro". Sabemos bem que o Brasil sempre foi um país violento, autoritário e pouco empático com as minorias. Mas Bolsonaro, mais que escancarar o que já existia, difundiu valores que refletiam o que de pior havia em todos nós.

Há aqueles que veem alguma vantagem nisso, afirmando que ao menos agora as coisas não estão mais escondidas. Eu não concordo. Penso que valores primitivos, ainda que inevitavelmente preservados em nossa psique, devem ser reprimidos, pois esta é uma condição imprescindível para se viver em sociedade.

Bolsonaro e seus apoiadores são uma verdadeira caixa de ressonância desse primitivismo. O que vale é o egoísmo individual e a sobrevivência do líder do clã. Para que o "clã" funcione e governe, é preciso eliminar todos que pensam de forma diferente a esse líder. Não é à toa que Freud via na Igreja e no Exército —duas bases essenciais do bolsonarismo— as matrizes para a psicologia de massas.

Bolsonaro nos fez entrar em contato com nosso pior lado. Ele não foi um "desvio de rota" na história do país, mas a emergência de nossa face mais sombria. Resta-nos agora reprimi-la, nas urnas e nas redes.

* Warley Alves Gomes é mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente leciona no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais - Campus Avançado Arcos. Também se dedica à escrita literária, tendo estreado com a publicação do romance O Vosso Reino, uma distopia realista que remete ao Brasil contemporâneo.