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Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Vacinação infantil é o primeiro teste de fogo do STF em 2022

Ministros do STF Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, em sessão plenária  - Fellipe Sampaio/SCO/STF
Ministros do STF Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, em sessão plenária Imagem: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Colunista do UOL

05/01/2022 11h23

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* Cesar Calejon

Desde Platão, a formação de uma república depende do uso do conhecimento como base para fundamentar as ações humanas, principalmente, as tomadas de decisões nas áreas da política e da justiça, por uma simples razão óbvia: as deliberações nessas searas afetam profundamente não somente a vida dos indivíduos, mas a de toda a comunidade à qual eles pertencem, em última instância.

Mais de vinte e quatro séculos após o filósofo ateniense elaborar o livro A República, o presidente da maior nação latino-americana, durante a pandemia global mais letal dos últimos cem anos, desarticulou a organização da atuação social com base no uso da ciência, do bom senso e da razão.

Conforme enfatizado em artigo prévio publicado nessa coluna, as crianças brasileiras são as mais recentes vítimas do bolsonarismo. Cabe agora ao STF, que tem nessa matéria o seu teste de fogo, estabelecer um limite para as insanidades ideológicas de Bolsonaro e o seu grupo de fanáticos seguidores.

Essa resolução é de suma importância, porque determinará a capacidade de a Corte Constitucional brasileira preservar os valores republicanos, bem como as instituições que se formam a partir deles, em seus devidos lugares. Na última quinta-feira, Bolsonaro afirmou, durante a sua live semanal, que o Ministério da Saúde decidirá, nesta quarta (5), sobre a imunização infantil contra a covid-19 (das crianças de cinco a onze anos).

De acordo com dados do próprio Ministério da Saúde, o Brasil registrou, desde o começo da pandemia (março de 2020) até o dia 6 de dezembro de 2021, 2.625 óbitos de pessoas entre zero e dezenove anos: média de quatro mortes diárias de crianças ou adolescentes que teriam as suas vidas inteiras pela frente, possivelmente, caso tivessem sido completamente imunizadas.

Mesmo ciente desses dados, Bolsonaro disse, ainda na live da semana passada: "não entendo essa gana por vacina". Afirmou também que não vacinará a sua própria filha, de onze anos de idade. "Nossa filha não tem quase nada a ganhar com a vacina", complementou. Bolsonaro, além de não entender nada de coisa alguma, parece não se sensibilizar com as mortes de crianças e jovens.

Contrariando, fundamentalmente, toda a comunidade científica global e inúmeras instituições médicas e políticas que atestaram a segurança do imunizante e a necessidade de vacinar as crianças, Marcelo Queiroga, ministro da saúde bolsonarista, demonstrou a intenção de exigir prescrições médicas e o consentimento (termo de responsabilização) dos pais que desejam vacinar os seus filhos.

A Rede Sustentabilidade recorreu ao STF, solicitando que o Ministério da Saúde seja obrigado a oferecer as vacinas para as crianças sem os fatores impeditivos. Faz sentido, porque, de qualquer forma, crianças entre cinco e onze anos jamais seriam capazes de procurar os centros de imunização sem a tutela dos seus pais ou responsáveis.

O que não faz sentido é criar mais dificuldades e obstáculos para efetivar a vacinação de todas as parcelas da população brasileira, até porque, basicamente, a saúde de todos depende da imunização completa do maior número possível de cidadãos, conforme vem sendo feito em diversos países ao redor do mundo.

Inacreditavelmente, Bolsonaro parece não entender essa questão básica e reagiu em seguida, afirmando que o STF não poderia "interferir numa coisa dessas. (...) Um juiz decidir sobre a vacinação da minha filha? Tá de brincadeira comigo?", complementou.

Ninguém está de brincadeira, nem sequer o próprio presidente, que, ao longo do seu mandato, incorreu em uma série de crimes, como o de epidemia (artigo 267 do Código Penal), por exemplo, que tem pena prevista de dez a quinze anos de prisão. Portanto, não se trata de simples jogo político ou de brincadeira.

Imagine que, de forma autoritária, não somente o presidente, mas diversos cidadãos passassem a acreditar que podem fazer o que querem com os seus filhos ou no âmbito social. Seria o fim da República e o triunfo do projeto que o bolsonarismo vem se esforçando para implementar no Brasil.

Para efeito de compreensão, pense na condução do trânsito no Brasil. Sob a lógica bolsonarista, qualquer pessoa pode entender que "discorda" de parar no sinal vermelho. Contudo, já foi cientificamente comprovado que essa "escolha" incorre em atropelamentos e mortes. Ou seja, significa um crime, que pode ser intencional, com dolo, ou acidental (culposo). Ainda assim, uma prática criminosa com punição prevista por Lei.

Na República Federativa do Brasil, os cidadãos não têm a prerrogativa de avançar com os seus carros no sinal vermelho. Por razões óbvias. Assim como são evidentes as razões que nos levam a querer vacinar o maior número possível de cidadãos: garantir o bem-estar individual e coletivo dos brasileiros, o que, para o bolsonarismo, parece simplesmente não fazer a menor diferença.

Tendo em vista o flerte com o autoritarismo em pleno último ano de mandato, esse pode ser o fiel da balança que estabelecerá o tom considerando a luta entre as forças democráticas contra o bolsonarismo até as eleições presidenciais de outubro.

* Cesar Calejon é jornalista, com especialização em Relações Internacionais pela FGV e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela USP (EACH). É escritor, autor dos livros A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI (Kotter) e Tempestade Perfeita: o bolsonarismo e a sindemia covid-19 no Brasil (Contracorrente).