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'Cidade perdida' da Amazônia mostra a nocividade das teorias da conspiração

Amazônia - RICARDO STUCKERT/iStock
Amazônia Imagem: RICARDO STUCKERT/iStock

Colunista do UOL

06/07/2022 11h00

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Igor Tadeu Camilo Rocha*

Não pretendo falar aqui da estapafúrdia peça ficcional - me recuso a chamar essa mistura de realismo fantástico com filme B de ficção científica de "descoberta" — chamada Ratanabá, suposta cidade perdida enterrada na Amazônia e que seria mais antiga que a própria floresta. Sobre isso, deixo a explicação dada em matéria da BBC Brasil pelo arqueólogo Eduardo Goés Neves, professor do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo (USP), sobre o assunto e suas implicações.

Aqui, o ponto é outro. Cabe dizer que o caso Ratanabá serve didaticamente para falarmos sobre o quanto teorias conspiratórias podem ser nocivas ao debate público e suas implicações políticas, por mais alucinadas que elas pareçam. Por mais que toda essa estória pareça engraçada numa primeira vista, se não tomarmos cuidados ela vira um QAnon para chamarmos de nosso.

Primeiro, é importante apontar o que são teorias da conspiração, que são bem diferentes das investigações a respeito de conspirações reais. As investigações sobre conspirações reais, como as que são objeto do jornalismo investigativo, por exemplo, têm características opostas das teorias da conspiração. Jornalismo investigativo é investigação séria - quando um profissional investiga conexões entre pessoas poderosas e uma rede criminosa, levantando evidências e provas para, depois, construir a partir delas uma narrativa que as ordena e encadeia os fatos apurados, deixando claro, inclusive, o que ainda cabe dúvida. Já quando se afirma como pressuposto que existem poderes ocultos que movem a realidade, e todos os fatos são organizados e narrados em cima dessa premissa, temos uma teoria conspiratória.

Em síntese, a investigação séria engloba métodos de averiguação e apuração de fatos, enquanto a teoria conspiratória é uma espécie de modelo a partir do qual se interpreta a realidade.

A investigação séria deixa margens para dúvida e está sempre aberta a críticas, questionamentos, novas provas etc., mas isso não existe na teoria conspiratória. Para elas, qualquer imprecisão ou a complexidade dos fatos e acontecimentos - sociais, políticos, econômicos, científicos etc. — é sempre explicada pela ação de agentes ocultos, que operam como verdadeiros motores da história.

Estudos culturais recentes, como o de Jovan Byford (Conspiracy Theories: a critical theory, 2011) ainda apontam que o gênero narrativo que chamamos de teorias da conspiração surgiu na Modernidade, mais especificamente no curso da Revolução Francesa (1789) e nos seus desdobramentos. Dali e ao longo dos séculos 19 e 20 elas assumiram uma faceta antimoderna e reacionária. Isso porque elas tenderam, desde então, a sempre apontar como antigos ordenamentos sociais e políticos erodiam ou eram ameaçados por pequenos grupos de conspiradores.

Além disso, as teorias da conspiração ganharam potencial mobilizador. Isso porque elas funcionam em cima de dois aspectos que se complementam. De um lado, elas criam e reforçam sentimentos de comunidade que são criadas em torno de teorias como a do Qanon ou da "Terra Plana". São comunidades que se constroem em torno de narrativas que opõe nós x eles, sendo o "nós" os portadores de uma verdade escondida pelo "sistema", controlado pelos agentes da conspiração, e o "eles" enquanto "manipulados". Forma-se assim um subjetivismo fechado que é constantemente reforçado por outro aspecto importante, que é a constante representação do "outro" enquanto inimigo.

Por isso, o crente na teoria conspiratória é constantemente chamado a agir. A temporalidade da narrativa conspiratória sempre gira em torno de um futuro próximo, quase imediato, quando o inimigo irá agir e o "grande plano" será realizado. Quem acredita, por exemplo, na "ideologia de gênero", é instado constantemente por seus pares a agir contra feministas, progressistas, LGBTQIA+, o "politicamente correto" etc. pelo suposto risco de, já na próxima geração, distinções entre heterossexuais e homossexuais ou entre homens e mulheres serem definitivamente eliminadas.

Com essas premissas, podemos voltar à peça conspiratória Ratanabá. Um exame crítico dos tweets do ex-secretário Mario Frias, além da repercussão do caso, pode, como disse, servir de maneira didática para explorarmos o potencial nocivo desse tipo de teoria.

ONGs e "interesses de poderosos" na Amazônia
Comecemos com a profusão de anúncios sensacionalistas relacionando a "descoberta" de Ratanabá ao "verdadeiro interesse de poderosos" ou de ONGs na região Amazônica, visível em diversas manifestações em redes sociais. Por sua vez, o tweet de Mario Frias sobre a suposta cidade começa falando da "revelação de Ratanabá". Nele há um aspecto retórico importante das teorias conspiratórias: sua estética de verdade revelada, que torna quase que uma espécie de iniciação a uma seita a adesão a uma comunidade de crentes a essa explicação conspiratória.

Em conjunto, esses tweets mostram importantes questões que podemos analisar.

A começar pela ênfase que essa narrativa conspiratória tem em dois elementos. Primeiro, de que existiriam "verdadeiros interesses" ocultos por trás do interesse de organizações e figuras diversas que atuam ou se manifestam pela proteção da Amazônia, que é o acesso às riquezas ocultas, mas agora reveladas e, ao mesmo tempo desacreditadas pelo "sistema" formado por "manipulados" e dirigido pelos "agentes" da conspiração. Em segundo lugar, um chamado à necessidade de difundir essa "verdade" e, mais que isso, agir para que o "sistema" não realize o grande plano roubar essa "nossa" "riqueza".
Note que há uma delimitação óbvia do "nós" x "eles" nessa construção. Nesse processo, são construídos inimigos na figura dos defensores de agenda ambiental contrária à adotada pelo atual governo. O "nós", obviamente colocado ao lado da extrema-direita governista, representa os verdadeiros portadores da "verdade" da descoberta, além de terem consigo a potência da ação contra os inimigos que querem usurpar seu direito a essa suposta riqueza enterrada na Amazônia.
Uma implicação óbvia disso é a de reduzir o interesse em proteger a floresta e/ou populações da região a apenas uma fachada. Juntamente com isso, se produz importante força de coesão identitária e ideológica contra uma agenda de proteção da Amazônia e suas populações, chamando para uma ação.

Os usos políticos da teoria conspiratória
A teoria conspiratória Ratanabá se organiza como uma "revelação" dos verdadeiros interesses dos que defendem a Amazônia e suas populações: tomar dos brasileiros (aqui, reduzidos a uma comunidade de crentes, especialmente localizados na extrema direita) as riquezas ocultas da região. Temos, então, uma base narrativa que, ao mesmo tempo, explica de maneira organizada e coesa (ainda que com base em distorções e mentiras) e ao mesmo tempo insta ações concretas na realidade toda uma situação de conflitos e disputas naquela região. O potencial de uso político disso é bem substantivo, e mostra o grande risco que tais teorias conspiratórias representam.

Não é a primeira vez que o autor da peça Ratanabá, Urandir Fernandes de Oliveira, lança hipóteses sem base científica sobre a Amazônia com características narrativas muito parecidas com as que apresentamos ao longo do texto. Em vídeo de 2019, com quase 2 milhões de visualizações, ele fala sobre a floresta "não queimar", tese reproduzida por Bolsonaro em encontro do G20.

O conspiracionismo, nesse caso, vai ao encontro de agendas políticas defendidas para a região Amazônica por diversos grupos, como aqueles que entendem que a floresta deva ser desmatada e sua exploração deva acontecer sem maiores critérios definidos para a sua preservação.

Se faltam evidências para dizer que Urandir tem interesses em comum com grupos econômicos ou com políticos que defendam esse tipo de política para a Amazônia, é inegável que narrativas como essas, produzidas e divulgadas por ele e seu instituto, servem a quem os tem.

Dizer que a Amazônia está quase que inteiramente preservada porque "ela não queima" ou que há "riquezas escondidas lá que eles não querem que exploremos" serve de argumento para políticas como as que o governo federal e alguns setores econômicos, como o agronegócio e a mineração, adotam e defendem para a região.

Acho mais provável que tal governo e tais setores se apropriem e/ou usem de algum modo Ratanabás do que, por exemplo, continuem a defesa de suas agendas, mas rechacem a teoria insólita da cidade enterrada na Amazônia por algum compromisso com a razão e com o interesse público.

Sobre os ombros de gigantes
Algumas avaliações apontam que o surgimento de Ratanabá como assunto foi mero diversionismo criado artificialmente para se desviar a opinião pública do assassinato do jornalista Don Phillips e do indigenista Bruno Pereira, que têm gerado grande comoção, bem como relações óbvias do fato com as atuais políticas do governo federal para a Amazônia.

Mas outro tweet do ex-secretário pode apontar para uma outra realidade, bastante inconveniente, sobre as teorias de conspiração.

No dito tweet, Frias fala de apoios que os "pesquisadores" do instituto de Urandir teriam recebido. Independentemente de esses apoios terem ocorrido ou não, é preciso entender que as fotos aéreas, viagens, contratação de pessoas que colaboram com isso e a divulgação da "descoberta", dentre outras coisas, custa caro. E alguém teve de pagar por isso, além de ser pouco provável que o tenha feito somente pela paixão de mostrar ao mundo a cidade que teria surgido antes dos dinossauros.

Erik Conway e Naomi Oreskes em Merchants of Doubt (2010) mostraram com detalhes aquilo que denominaram "estratégia do tabaco", que envolvia esforços e gastos de milhões de dólares das empresas tabagistas de instalarem na opinião pública a dúvida sobre cigarro causar ou não câncer. O resultado é que as medidas mais duras contra a indústria tabagista foram tomadas décadas depois de a ligação do fumo com o câncer ter se tornado um consenso científico.

Para "vender a dúvida", segundo esses autores, patrocinar junk science ou teorias da conspiração de maneira que elas tenham circularidade na opinião pública e ganharem status de igualdade ou até superioridade em relação à ciência feita de maneira séria é um procedimento fundamental.

Byford, já citado, deu exemplos de usos políticos de teorias da conspiração, como o caso de os infames Protocolos dos Sábios de Sião terem republicações pagas por grandes empresários e políticos no início do século 20, quando viam nos governos autoritários, com discursos nacionalistas, fascistas e antissemitas formidáveis oportunidades para ampliarem seu poder ou impedir avanço de adversários.

Evidentemente não é possível afirmar quem pagou ou deixou de pagar pela "pesquisa" que chegou até a teoria conspiratória Ratanabá, ou tecer muitas hipóteses sobre sua repercussão - na era da internet e redes sociais, há elementos mais orgânicos de circulação desse tipo de informação com características bem particulares, inclusive. Porém, tendo em vista a infinidade de implicações que uma teoria conspiratória dessa traz, é preciso ter a devida atenção.

As teorias são conspiratórias, os problemas são reais
Salvo uma e outra exceção, teorias conspiratórias não surgem de conversas aleatórias de pessoas com dificuldade de separar fantasia da realidade. Pelo contrário, elas são pensadas de maneira bastante lúcida e suas implicações costumam ser bastante concretas. E mesmo as que surgiram de maneira mais espontânea, quando ganham proporções maiores, repercutem para milhões e começam a render dinheiro e votos, precisam de outro nível de atenção.

Em síntese, é preciso sempre reforçar que teorias conspiratórias, por mais bizarras que pareçam, não são mera peça para divertimento ou piadas. Pessoas agem motivadas por elas, elegem lideranças e porta-vozes delas no debate público e isso, quando mobilizado, tem força política expressiva. As teorias conspiratórias são parte importante de muitos movimentos políticos, sempre pautados por irracionalidade e comumente autoritários, antimodernos e antidemocráticos. Por mais que Ratanabás não existam, as implicações de acreditar-se nisso são bastante materializáveis no mundo real.

*Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)