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Encontro com embaixadores será palco do realismo mágico de Bolsonaro
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* Warley Alves Gomes
É fato conhecido que a política latino-americana foi combustível para o chamado "realismo mágico", movimento literário que teve seu ápice na segunda metade do século XX, composto por escritores do calibre de Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. O realismo mágico usava da literatura para denunciar os crimes das ditaduras da América Latina, demonstrando como, nesses regimes, a realidade parecia por vezes mais absurda que a ficção.
Quando se olha para o Brasil de Jair Bolsonaro, a impressão que se tem é mesmo a de viver em um país marcado pelo absurdo. Poderíamos dizer que este se funde de tal forma ao cotidiano que corremos o sério risco de perder a perplexidade diante dos grotescos e infames atos do presidente.
É o caso do encontro de hoje (18) com embaixadores, no qual o presidente apresentará supostas provas de fraudes nas eleições de 2014, 2018 e 2020. É preciso logo dizer: não existem tais provas. O objetivo do encontro, assim como o da maior parte das ações políticas de Bolsonaro, é usar da mentira e da distorção como instrumentos para derrubar a democracia e permanecer no poder, de forma cada vez mais autoritária.
Mais que um exemplo de audácia, o encontro com os embaixadores é uma amostra de desprezo pelas instituições políticas, pela vontade popular e da falta de compromisso de Bolsonaro com a verdade. Indo mais além, é sinal claro e em alto som, para os que ainda não compreenderam a gravidade da situação, que o presidente parece mesmo estar disposto a conturbar o processo eleitoral e instalar um Estado de exceção no Brasil.
Enganam-se os que pensam que Bolsonaro não tem força o suficiente para levar a cabo seu projeto de ditador tropical. O colunista do UOL Reinaldo Azevedo apontou, com muita clareza, a novidade que o encontro com os embaixadores apresenta: a participação de Ciro Nogueira, um dos caciques do Centrão, que se mostra disposto a respaldar os delírios de Bolsonaro, sinalizando seu apoio, se não a um golpe de Estado claro, ao menos a um Estado de exceção de período indefinido, ocasionado por distúrbios e rebeliões de apoiadores do presidente.
Frente a esta situação de instabilidade, alguns julgam, equivocadamente, que o apoio de cerca de 30% do eleitorado é insuficiente para que o presidente consiga prejudicar o processo eleitoral e instaurar um Estado de exceção no país. A meu ver, essa leitura é incorreta ou, no mínimo, imprecisa. Ditaduras normalmente não dispõem do apoio da maioria da população, mas de uma significativa minoria, suficientemente coesa e articulada. Nessa altura do campeonato, ninguém duvida da coesão dos apoiadores de Bolsonaro.
Para compreendermos as possibilidades de distúrbios generalizados nessas eleições, convém consultar o célebre "Psicologia de Massas e Análise do Eu", texto escrito por Freud em 1920, quando o fascismo ganhava força na Europa, em que o médico austríaco compara a figura dos grandes líderes populistas a organizações como o Exército e a Igreja.
Segundo Freud, a relação entre o líder e seus seguidores seria configurada por uma estrutura hierárquica, na qual ele é visto como superior a seus subordinados, enquanto estes se veem como iguais entre si. Ao passo que o líder encarna diferentes ideais de seus seguidores — na maioria das vezes, tais ideais são múltiplos e mesmo conflitantes —, ele garante sua coesão.
É essa coesão, e não no compromisso com a verdade ou com a democracia, que sustenta a audácia e o descaro de Bolsonaro em se reunir com embaixadores para mostrar "provas" inexistentes e, mais uma vez, mentir. A reunião tem um duplo propósito: anunciar que uma tentativa de golpe será efetuada e "performar" ao seu eleitorado, de modo a fazer com que a mentira soe legítima, a ponto do presidente se posicionar externamente.
Aos que ainda subestimam Jair Bolsonaro, é preciso fazer as contas no papel: até o momento, ele dispõe de 30% do eleitorado, apoio de parte do Centrão e do Ministério da Defesa — ministério este que, nos últimos três anos e meio, mostrou-se inteiramente disposto a praticar o contrário do que seu nome indica. Ou seja, o presidente tem o apoio de parcela significativa e coesa de parte da população, de uma parte do poder político e de uma fração importante dos militares. Resta alguma dúvida que parte da elite agrária apoiaria uma ruptura institucional?
Bolsonaro só poderá se reunir com embaixadores para anunciar seu golpe porque considera que tem apoio interno o suficiente para isso. A alegação de fraude nas eleições é absurda, assim como toda a atuação do presidente nos últimos anos é típica do "realismo mágico" latino-americano. Se a História demonstra que o imponderável é sempre possível e que as rupturas institucionais acontecem de tempos em tempos, a literatura nos ensina que o absurdo muitas vezes se faz realidade.
* Warley Alves Gomes é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Também se dedica à escrita literária, tendo estreado com a publicação do romance O Vosso Reino, uma distopia realista que remete ao Brasil contemporâneo.
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