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Com radicalização política sem precedentes, Lula não terá margem para errar
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* Raphael Tsavkko Garcia
O Brasil tem um novo presidente. Ou um antigo, depende de como você olhe para a situação. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi mais uma vez eleito para um mandato de quatro anos. Após passar 580 dias na cadeia por acusações de corrupção e ver suas chances de concorrer às eleições em 2017 suspensas, as acusações foram retiradas e Lula voltou ao topo após uma campanha eleitoral extremamente violenta e com um país dividido.
A diferença de votos entre Lula e o segundo colocado, o atual presidente Jair Bolsonaro, foi de pouco mais de 2 milhões de votos, com Lula ganhando por uma enorme margem na região nordeste e Bolsonaro ganhando por uma grande margem no sul, trazendo à tona preconceitos regionais antigos e profundamente enraizados no Brasil.
Se por um lado, 60 milhões de brasileiros votaram a favor do retorno de Lula, 58 milhões queriam a continuidade do governo Bolsonaro, responsável pela morte de milhares de pessoas durante a pandemia - ou a "gripezinha", como dizia o presidente -, que promoveu ativamente a destruição da Amazônia e deixou o país isolado internacionalmente, mantendo apenas contatos próximos com párias como o presidente da Hungria, Viktor Orbán.
Em um discurso logo após a divulgação dos resultados, Lula falou sobre a reconciliação e a adesão a um Brasil dividido, mas ele terá dificuldades para alcançá-la. Por todo o país, em pelo menos 25 estados, caminhoneiros e outros apoiadores de Bolsonaro estão organizando manifestações e bloqueando estradas, levando à escassez de bens básicos, na tentativa de contestar o resultado das urnas e forçar um golpe.
Segundo David Nemer, professor assistente de estudos de mídia na Universidade da Virgínia, há "muita mobilização no Telegram para paralisar o país, especialmente os caminhoneiros, e para ocupar edifícios públicos com manifestações. Esses caras não desistem".
Não ajuda à democracia que Bolsonaro tenha se recusado, por quase dois dias, a reconhecer a derrota ou mesmo a fazer uma declaração de qualquer tipo. E quando fez, em um discurso patético de menos de 2 minutos, se limitou a agradecer a seus eleitores, a incitar manifestações antidemocráticas (em que pese ter defendido que sejam "pacíficas") e se recusou a reconhecer a derrota ou parabenizar o adversário.
Bolsonaro segue se mostrando uma figura minúscula e patética - além de covarde por jogar seus apoiadores aos leões depois de passar quatro anos defendendo que daria um golpe caso saísse derrotado e, no fim, aceitar, através de discursos de aliados, a derrota.
Porém, Bolsonaro conseguiu ajudar a eleger uma forte base política de extrema-direita no Congresso que muito provavelmente se oporá a quaisquer políticas vindas do novo governo de Lula e forçará duras negociações com o chamado Centrão.
Entre os apoiadores do atual presidente, há a "crença na mobilização dos caminhoneiros (com o apoio de empresários locais e seus maquinários), a denúncia da fraude eleitoral (alguns bastante elaborados, outros nem tanto), e a fé de que o silêncio de Bolsonaro é uma estratégia de mobilização popular e o desencadeamento do art.. 142 com as Forças Armadas", explica Odilon Caldeira Neto, professor de história contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora e especialista em extrema direita brasileira.
O artigo 142 da Constituição brasileira trata dos deveres e obrigações das Forças Armadas, entre elas a defesa do país, da lei e da ordem, e é constantemente mal interpretado pela extrema direita como dando ao Exército permissão para derrubar governos democraticamente eleitos.
Ninguém sabe se Bolsonaro deixará o governo pacificamente, afinal, ele passou anos ameaçando um golpe e, agora que perdeu, demonstra medo de ir preso em razão da série de crimes cometidos ao longo do mandato. Uma coisa é um discurso de dois minutos com tom supostamente pacificador, outro é o que ele pode fazer até janeiro.
Somente pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, Bolsonaro foi acusado de cometer crimes que vão desde delitos comuns até o crime de "epidemia com morte resultante" que poderia levar o futuro ex-presidente a passar até 30 anos na cadeia. Há também acusações de corrupção, divulgação de notícias falsas, vazamento de dados de investigação sensíveis etc. Tudo somado, Bolsonaro pode passar a maior parte de seu futuro fugindo da Justiça.
Mas uma coisa é fato: mesmo com milhares de mortos na pandemia, mesmo com toda a corrupção, com todas as ameaças e a violência real, com toda a grosseria e discurso de ódio, Bolsonaro ganhou quase metade dos votos.
Com parte do país imersa no processo de radicalização política, Lula não tem margem para erros. Ele herdará um país cuja economia passa por grandes problemas, com a fome pairando, com enormes dívidas devido aos gastos inconsequentes de Bolsonaro durante a campanha e, como mencionado várias vezes, com um país fortemente dividido.
Dividido não apenas nas linhas de ideologias políticas, mas também nas linhas religiosas, com o crescimento de denominações evangélicas conservadoras e radicais, assim como com forças de segurança ideologicamente alinhadas a Bolsonaro e, em algumas partes do país, ajudando ou pelo menos fechando os olhos para os bloqueios de estradas.
Uma vez superados os principais problemas imediatos, Lula terá a boa vontade da maioria das democracias do mundo. O presidente norte-americano Joe Biden foi rápido em felicitar sua vitória e espera-se que a relação entre o Brasil e os Estados Unidos ganhe novo impulso - Bolsonaro teve boas relações com Trump, mas o mesmo não se pode dizer de Biden.
No passado, com o apoio do então chanceler Celso Amorim, a política externa brasileira procurou ter uma posição ativa no cenário mundial: construiu um acordo entre Irã e Turquia sobre armas nucleares iranianas, forjou alianças com a África, reconheceu a Palestina como um Estado, e assegurou o destaque internacional do Brasil, mantendo excelentes relações com Barack Obama.
Com Bolsonaro, a política externa brasileira acabou em sua maioria isolada e, agora, algumas das antigas políticas de Lula podem voltar ao centro do palco, com o país renovando o debate sobre um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Resta saber como Lula navegará a espinhosa questão da guerra da Rússia contra a Ucrânia - durante a campanha, o ex-presidente acabou repetindo a velha ladainha da esquerda latino-americana que equipara o Estado agressor, a Rússia, com a vítima, Ucrânia.
Deve-se levar em conta, por fim, o papel do Brasil nos BRICS, mas é fato que, em seu discurso de posse, Lula também pregou uma aproximação cautelosa com Estados Unidos e União Europeia visando as questões ambientais e a preservação da floresta amazônica.
* Raphael Tsavkko Garcia é jornalista e doutor em direitos humanos pela Universidade de Deusto. Contribuiu para veículos como Foreign Policy, Undark, The Washington Post, Deutsche Welle, entre outros.
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