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Crise Climática

REPORTAGEM

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Lei antidesmatamento na Europa pode sacrificar o Cerrado brasileiro

Transcerrado, rota de escoamento da produção do Matopiba, mostra um deserto de soja em área antes coberta por vegetação nativa do cerrado - Governo do Piauí/Divulgação
Transcerrado, rota de escoamento da produção do Matopiba, mostra um deserto de soja em área antes coberta por vegetação nativa do cerrado Imagem: Governo do Piauí/Divulgação

Colaboração para o UOL, em São Paulo

15/12/2022 11h00

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Um acordo histórico realizado no dia 6 de novembro, após meses de discussão no Parlamento e Conselho europeus, pode representar uma proteção reforçada para as florestas em todo o mundo, ao proibir a entrada no bloco de produtos ligados ao desmatamento.

Por outro lado, ao restringir a proibição apenas às florestas, a nova legislação estimula a migração de atividades desmatadoras para outros ecossistemas, sendo o cerrado o bioma mais visado no Brasil para este "sacrifício".

O cerrado é a savana mais biodiversa do mundo, o que significa que sua destruição representará a extinção em massa de uma gama de espécies. Além disso, o cerrado e suas áreas de intersecção com a Amazônia têm o papel de proteger a maior floresta tropical do mundo de um processo de perda de umidade que já está em curso, alimentado pela derrubada sistemática de árvores e pelo aquecimento do planeta.

A coluna Crise Climática entrevistou o advogado Guilherme Eidt, assessor de políticas públicas do ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza), uma organização que tem se especializado na defesa do cerrado em pé. Ele é observador da COP15, a Conferência da ONU sobre Biodiversidade, que está acontecendo em Montreal, no Canadá, até o dia 19 de dezembro.

O especialista explica os riscos que uma maior exposição do cerrado ao desmatamento representa, aponta mudanças necessárias na lei e como ela impacta as negociações da COP15.

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Cínthia Leone: Ao conferir proteção exclusivamente às florestas, como é a Amazônia, esta nova legislação na Europa pode estar expondo ainda mais outros biomas, como as savanas, caso do cerrado. Como isso acontece?

Guilherme Eidt: É natural que os traders [neste caso, negociadores de commodities agrícolas] e produtores rurais busquem comprar e expandir a produção em áreas com menos ou sem restrições ou condicionantes de regularidade ambiental. É só observar o efeito da moratória da soja em vigor para a Amazônia desde 2008. Desde então, e com a legislação federal brasileira permitindo desde 2012 [Código Florestal] a conversão e desmatamento de até 80% das propriedades rurais no cerrado, o que se viu foi o avanço acelerado sobre territórios tradicionalmente ocupados em toda a região do Matopiba [cerrado de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia], aumento de casos de grilagem verde, violência contra povos e comunidades, e a explosão do desmatamento, associada à perda da biodiversidade e à redução de vazão ou morte de inúmeros rios na região.

A moratória da soja é super-importante, mas ela não pode valer só para Amazônia, sob o risco de haver o transbordamento do desmatamento para outros biomas, como de fato aconteceu."
Guilherme Eidt, assessor de políticas públicas do ISPN

Pouca gente está alerta para a necessidade de mudar isto. O manual de crédito rural, por exemplo, exige condicionantes ambientais apenas para concessão de crédito na Amazônia, mas não para o cerrado. É como se houvesse uma carta-branca para o crime ambiental no cerrado, instituída pelo governo federal brasileiro.

A normativa europeia deve ajudar a destravar o acordo comercial Mercosul-União Europeia, sob o argumento de que os europeus estão fazendo a lição de casa e estabelecendo salvaguardas ambientais. O acordo vai aumentar a demanda por commodities agrícolas, trazendo ainda mais pressão sobre os territórios de povos e comunidades no cerrado.

Há uma possibilidade de que esta legislação seja aprimorada no futuro. Que tipo de modificações seriam bem-vindas para conferir uma proteção efetiva à biodiversidade?

O conceito de florestas da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura], que é a base dessa normativa, considera altura e cobertura da vegetação para categorizar áreas como florestas. Para a ciência, conceituar e diferenciar ecossistemas faz sentido, mas existem outros aspectos ligados à fitofisionomia, solo e paisagem que deveriam ser melhor ponderados para indicar a relevância ecológica.

Há uma motivação política em utilizar essa definição apenas para florestas. Ela desconhece propositalmente as contribuições de outros ecossistemas complexos, como o cerrado brasileiro, cujas principais ajudas ao clima estão em suas raízes."

Os enormes estoques de carbono e capacidade de recarga hídrica de grandes aquíferos são serviços ecossistêmicos essenciais proporcionados pela vegetação nativa do cerrado, e elas contribuem para provisão de água e geração de energia elétrica de todo o centro-sul do Brasil e países vizinhos como Bolívia, Paraguai, Argentina. Desconhecer isso é uma solução para contemporizar interesses econômicos de setores que ainda não compreendem o quão dependentes são seus negócios das soluções baseadas na natureza.

Será preciso iniciar logo um processo de estudo e revisão da normativa. Até porque há o risco de que ela se torne ineficaz, já que é dessa região que a maior parte da soja comprada pela Europa vem.

Os legisladores europeus disseram que a nova lei do bloco manda um recado às negociações da COP15. Você poderia comentar de que maneira esta medida pode influenciar a obtenção de um acordo global pela biodiversidade em Montreal?

O objetivo é alcançar em Montreal um acordo ambicioso para maiores compromissos de conservação e reversão do processo de perda da biodiversidade. É claro que a sinalização da Europa com uma normativa que promete orientar práticas de mercado em todo o mundo voltada para proteção das florestas é importante e tem seu valor. O problema é que ela deve ser um parâmetro para outros países, como os Estados Unidos, que também não deve ir além de uma abordagem florestal.

Para os esforços de conservação que defendemos na COP15 é preciso que esses compromissos sejam dedicados a todos os ecossistemas.

Todos os ecossistemas importam. Essa tem sido a posição de lideranças indígenas e quilombolas brasileiras e de outros povos e comunidades tradicionais de todo o mundo."

É difícil alcançar metas realistas e ambiciosas quando se busca acomodar o pragmatismo econômico que pauta a diplomacia nessas negociações. A ambição deve vir acompanhada de ação concreta, abertura para cooperação técnica, compartilhamento de dados, recursos financeiros acessíveis diretamente para aqueles que estão nos territórios promovendo a conservação por meio do uso sustentável da biodiversidade. Então, a sinalização dada pela Europa com essa normativa é contundente, mas sozinha ela não vai destravar as negociações. é Preciso colocar mais do que isso sobre a mesa. Há um jogo de transferência de responsabilidades, e os países ditos "não-desenvolvidos" não querem pagar a conta sozinhos para salvar o planeta.

Muitas vezes o governo brasileiro confundiu os interesses de grandes desmatadores brasileiros com os interesses nacionais. No governo Bolsonaro, medidas para barrar importações de desmatamento foram vistas como um boicote ao país em si. Como ambientalista, como gostaria que o novo governo brasileiro interpretasse o novo acordo europeu?

É sem dúvida uma oportunidade de educar uma parcela dos produtores rurais brasileiros que ainda não despertou para a importância de conciliar conservação ambiental com produção agrícola. A resistência do setor ruralista mais incauto tem sido grande, e eles buscam no Congresso Nacional formas de minar e retroceder na implementação de medidas socioambientais. Um exemplo é o pacote da destruição em discussão no Legislativo.

O novo governo do presidente Lula vai precisar lidar com esse grupo e segurar o ímpeto devastador dessa turma no Congresso."

Ninguém ficou feliz com a negociação para aprovar o Código Florestal - e há quem veja nisso um sinal de equilíbrio. Naquele momento, o cerrado já foi alçado à condição de "bioma de sacrifício", para garantir a expansão do agronegócio, mas nem com isso eles estão satisfeitos e buscam retroceder nos limites e parâmetros de proteção que foram acordados em 2012.

A normativa europeia tem a virtude de sinalizar que o mercado não aceita mais esse tipo de coisa. É preciso que o futuro governo saiba aproveitar essa mensagem para orientar seus posicionamentos políticos de forma clara e objetiva desde o início da próxima gestão. Do contrário, as expectativas altas geradas pelos pronunciamentos do presidente Lula na COP27 do Clima, no Egito, correm o risco de serem esvaziadas.

E o que mais você precisa saber

fogo amazonia - iStock - iStock
Desmatamento na Amazônia
Imagem: iStock

SINAL VERDE

Na Amazônia, a derrota de Bolsonaro e a expectativa de que o novo governo Lula combaterá crimes ambientais geraram uma versão florestal dos atos antidemocráticos. Dados do INPE indicam que novembro registrou um aumento de 123% no desmatamento amazônico e 1.271% nas queimadas em relação ao mesmo mês do ano passado, quando esses índices já eram altos. "Esse resultado chega três dias depois da aprovação da regulação europeia contra o desmatamento importado. Os números nos deixam mais distantes de nos ajustar à nova lei, prejudicando o agronegócio brasileiro e a imagem do país no exterior", afirma Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, que fez uma análise completa desses números.

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Danos provocados pelo garimpo ilegal na região do rio Uraricoera, na Terra Indígena Yanomami
Imagem: FUNAI

TERRA ARRASADA

A convite do Greenpeace, jornalistas do Brasil e do exterior sobrevoaram a parte brasileira da Terra Yanomami e conversaram com lideranças locais e especialistas sobre a extensão do dano provocado pelo garimpo do ouro. Eles verificaram a existência de uma estrada clandestina que pode ter de 120 km a 150 km dentro da TI. A via facilita o transporte de retroescavadeiras hidráulicas flagradas em grande número durante o sobrevoo dentro da terra indígena. Fantástico e The Guardian cobriram em detalhes.

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Plenário da Câmara dos Deputados
Imagem: Michel Jesus/Câmara dos Deputados

DIAS DE LUTA

Fracassou (pelo menos por enquanto) o esforço da base governista para aprovar neste fim de ano uma lista de projetos que podem agravar a crise de desmatamento no país. Muitas dessas medidas estavam na pauta da Comissão de Meio Ambiente, com a Mata Atlântica entre os principais alvos. Com o pedido de verificação de quórum dos próprios ruralistas, caiu a sessão da comissão, e provavelmente as matérias só serão discutidas novamente no Congresso em 2023.

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Aparelho de aquecimento de água a gás muito usado na Europa
Imagem: Getty Images

ANTIGAS NOVIDADES

Um dos aspectos mais críticos da crise energética europeia em meio à guerra é o aquecimento predial, uma necessidade comum em muitas partes do Hemisfério Norte durante o inverno. A Rússia apostou que a falta do seu gás diminuiria o apoio à Ucrânia quando o frio chegasse, relaxando boicotes ao seu produto. Em vez disso, uma tecnologia dos anos 70 e climaticamente correta acendeu - a bomba de calor, uma espécie de ar condicionado ao contrário. O NYT explica em detalhes como a Alemanha está apostando seu futuro nisso, e o Carbon Brief destaca que a Agência Internacional de Energia [finalmente] admitiu esta como a melhor opção para aquecer ambientes fechados.

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