Topo

Democracia e Diplomacia

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Clima, justiça e desenvolvimento: quais escolhas devem guiar o Brasil?

Terreno desmatado e queimado é visto na floresta Amazônia nos arredores de Porto Velho, em Rondônia - Bruno Rocha /Fotoarena/Folhapress - set.2019
Terreno desmatado e queimado é visto na floresta Amazônia nos arredores de Porto Velho, em Rondônia Imagem: Bruno Rocha /Fotoarena/Folhapress - set.2019

Helena Margarido Moreira*

20/04/2021 04h00

Na abertura do livro "Crise Climática e o Green New Deal Global" (2020), Noam Chomsky aponta a crise climática como acontecimento único na história humana. Trata-se de crise existencial que definirá nosso destino neste mundo que nos é comum.

A estratégia geopolítica que despontou no horizonte global com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016 ou, como define Chomsky, a "internacional reacionária" e suas alianças, da qual faz parte o Brasil de Bolsonaro, procuraram reformatar a política internacional. No entanto, como a derrota eleitoral nos EUA mostrou, estes retrocessos não são inevitáveis. Nosso destino é definido por meio de escolhas.

O Programa Renascença abre espaços para que imaginemos escolhas diferentes das que têm sido feitas pelo atual governo, no qual desastres se acumulam em quase todas as áreas. Prioritário, e eixo central de uma futura virada, será reposicionar o Brasil no esforço coletivo de combate às mudanças climáticas. Isso requer primeiramente esforços mais decisivos no combate às desigualdades econômicas e sociais e na proteção das populações mais vulneráveis. Além disso, cumprir a Constituição de 88 e a legislação internacional sobre usos e proteção dos recursos naturais. Com perspectivas de mais longo prazo, aprofundar a cooperação entre os países e ampliar debates e ações coletivas sobre que tipo de desenvolvimento buscamos para as futuras gerações.

Segundo o relatório de 2018 publicado pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), o planeta já aqueceu 1,0 ℃ desde os níveis pré-industriais. Os riscos são crescentes. Dependem da magnitude e ritmo do aquecimento, da localização geográfica, de níveis de desenvolvimento e vulnerabilidade e da implementação de opções de adaptação e mitigação das emissões dos gases de efeito estufa. A cada aumento de temperatura, crescem os riscos associados ao clima para a saúde, para os meios de subsistência, para a garantia da segurança alimentar, para o abastecimento de água, para o crescimento econômico, entre outros. Estes efeitos são sentidos de forma ainda mais severa pela população de baixa renda, aprofundando desigualdades entre indivíduos e grupos sociais.

Desde o início das negociações ambientais internacionais, começando na primeira grande conferência sobre o tema sob os auspícios das Nações Unidas em Estocolmo em 1972, passando pela Rio 92, Joanesburgo '00, Rio +20, o Brasil foi assumindo protagonismo. A postura histórica da diplomacia brasileira, especialmente desde a redemocratização, foi de diálogo e escuta tanto com os representantes diplomáticos das Partes das Convenções (a Convenção do Clima, por exemplo) quanto internamente com a sociedade civil brasileira. Em um já clássico livro sobre o posicionamento brasileiro nas grandes conferências ambientais, o embaixador André Corrêa do Lago mostra que o Brasil sempre atuou como "ponte", buscando consensos entre os interesses de pelo menos dois grandes grupos, os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento/menos desenvolvidos, mas também fortalecendo reivindicações do mundo em desenvolvimento e o conceito de desenvolvimento sustentável.

No regime internacional de mudanças climáticas, a contribuição que o Brasil deu ao mundo ao controlar suas taxas de desmatamento, entre 2004 e 2012, foi considerada a maior já feita por uma das partes da Convenção do Clima. Perante o Acordo de Paris, o país se comprometeu, em 2015, com uma redução percentual das suas emissões de 37% e 43%, em relação a 2005, em 2025 e 2030, respectivamente, além de zerar o desmatamento ilegal até 2030.

No entanto, desde o início do governo Bolsonaro em 2019 temos testemunhado o desmonte da política ambiental. Podemos resumi-lo em quatro frentes: afrouxamento das leis ambientais, esvaziamento dos conselhos e órgãos de transparência, cortes de orçamento para repressão de ações de combate ao desmatamento e desmonte dos órgãos de fiscalização (IBAMA/ICM Bio). Tais políticas têm como base de sustentação o setor ruralista mais arcaico e pouco preocupado com a imagem externa do país, e o grupo mais ideológico, que associa equivocadamente políticas de combate à crise climática ao "globalismo" e comunismo. Os custos de manter essa diplomacia de confronto têm se mostrado inviáveis: há ameaças de desinvestimentos externos, aumento da classificação do grau de risco da economia brasileira, boicotes comerciais, enfim, aumento significativo da pressão internacional sobre as políticas ambientais.

Tal pressão conta agora com uma liderança de peso: o retorno dos EUA à mesa de negociações e o comprometimento da administração Biden/Harris com o combate ao aquecimento global e com a transição para economias de baixo carbono. O presidente estadunidense convidou Bolsonaro e mais 39 líderes mundiais para a "Cúpula dos Líderes sobre o Clima" que será realizada esta semana. Por meio do Departamento de Estado, declarou que espera que o Brasil apresente projeto detalhando ações de combate ao desmatamento ilegal da floresta amazônica. Biden, assim que assumiu, reintegrou os EUA ao Acordo de Paris e indicou a criação de um fundo internacional para financiar a proteção da Amazônia que, importante lembrar, é compartilhada entre nove países.

Com base nas melhores evidências científicas, o Acordo de Paris, acordo climático mais recente e abrangente, assinado por 195 países desde 2015, coloca como principal meta evitar um aumento de mais de 1,5 ℃ da temperatura global da Terra. Garantir um futuro com baixa emissão de carbono, adaptável, próspero e justo para todos. O documento também prevê a revisão dos compromissos cadastrados pelos Estados signatários, seguindo um mecanismo de aumento das ambições, ou seja, que os países sempre apresentem metas voluntárias progressivas. As revisões das NDCs (Nationally Determined Contributions) foram apresentadas ao final de 2020.

Em dezembro de 2020, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil divulgou revisão da sua NDC com dois pontos essenciais falhos. O primeiro é que o governo federal "reafirma o compromisso de redução das emissões líquidas totais de gases de efeito estufa em 37% até 2025 e 43% até 2030"; no entanto, a linha de base que é usada para fazer os cálculos é o ano de 2005, e esta linha de base está em constante atualização e foi recalculada. Conforme avaliado pelo Observatório do Clima, no novo cálculo, o total de emissões em 2005 passou de 2,1 bilhões de CO2 para 2,8 bilhões. Isso significa que se o Brasil mantém as porcentagens de redução das emissões que foram estabelecidas em 2015, o resultado final é que o país se permite emitir 400 milhões de toneladas a mais de gases de efeito estufa do que o previsto na meta original, quebrando um dos mecanismos centrais do Acordo de Paris, as ambições progressivas. O segundo ponto é que o Brasil propôs um "objetivo indicativo" (não uma meta) de atingir a neutralidade das suas emissões até 2060, podendo fazer isso antes caso receba um financiamento de 10 bilhões de dólares ao ano (demandando uma condicionalidade para atingir o objetivo).

A revisão das NDCs sob o Acordo de Paris foi um momento importante para os Estados indicarem suas decisões, suas escolhas com relação às suas políticas climáticas, em um contexto de aceleração do aquecimento global e de fechamento da janela de oportunidade. O Brasil escolheu maquiar seus dados, aparentando metas ambiciosas, mas na realidade se permitindo aumentar suas emissões. Tais metas foram definidas sem diálogo e participação da sociedade civil. A ausência de articulação contemplou outros Ministérios e atores domésticos importantes. A postura parece responder quase exclusivamente aos interesses dos setores mais arcaicos do agronegócio e da mineração, colocando em risco a sustentabilidade dos nossos recursos naturais e dos povos originais. Esta "pedalada climática" motivou, nesta última semana, uma ação popular, promovida por jovens ativistas contra Ricardo Salles e o ex-ministro Ernesto Araújo, que objetiva aumentar a pressão para que o país submeta nova meta com maior nível de ambição.

No momento em que escrevo este texto, o antiministro do Meio Ambiente continua empoderado por Bolsonaro para chefiar o posicionamento do Brasil nas negociações climáticas. O governo brasileiro negocia com o governo estadunidense possibilidades de acordo para reduzir o desmatamento da Amazônia, mas a falta de credibilidade de Salles perante a comunidade internacional e a centralização das propostas brasileiras em sua figura controversa podem prejudicar seu sucesso. Salles pede dinheiro para proteger a floresta, mas tratou de implodir o Fundo Amazônia, com quase três bilhões de reais para políticas de combate ao desmatamento do bioma, por discordâncias quanto à governança do Fundo, que exige transparência na prestação de contas e participação da sociedade civil.

A insistência do governo Bolsonaro em passar o chapéu sem apresentar qualquer proposta em troca não parece agradar os negociadores estadunidenses. Em carta enviada ao presidente dos EUA, Bolsonaro apenas aponta um compromisso de alcançar desmatamento ilegal zero até 2030, mediante "adequado apoio da comunidade internacional, na escala, volume e velocidade compatíveis com a magnitude e urgência dos desafios a serem enfrentados". É bom lembrar que este compromisso fazia parte da primeira NDC brasileira, mas Salles e Araújo a excluíram da revisão da mesma apresentada em dezembro. Há dúvidas, portanto, se será possível um acordo.

A sociedade civil brasileira está atenta e pressionando para que Biden não negocie a portas fechadas com Bolsonaro. Como explica Eliane Brum, este apelo é importante por alguns motivos:

  1. o governo Bolsonaro, desde que assumiu, quebra recordes de taxa de desmatamento, sendo a atual 48% maior do que quando eles assumiram;
  2. o governo Bolsonaro é denunciado por povos indígenas como "genocida" em comunicações ao Tribunal Penal Internacional;
  3. o governo Bolsonaro é apontado como o pior gestor da pandemia no mundo, sendo inclusive alvo de abertura de CPI no Senado Federal recentemente; e, acrescento,
  4. Salles foi alvo de dois processos em 24 horas, a ação popular pela "pedalada climática" e uma queixa-crime apresentada pelo superintendente da Polícia Federal no Amazonas (que foi exonerado do cargo um dia depois) por "atrapalhar a investigação da PF sobre a maior apreensão de madeira ilegal do país.

Em um momento em que Bolsonaro e Salles estão sob importante pressão, interna e externamente, um acordo bilionário com a maior potência global é considerado por vários setores da sociedade brasileira como um movimento inaceitável para legitimar um governo que até agora representou apenas retrocessos ambientais e civilizatórios. Os últimos acontecimentos apontam que não há indicativo de que este acordo será fechado antes da Cúpula. A ver.

Naomi Klein (2017) afirma que o negacionismo climático não será mais voltado à negação da ciência do clima, mas à necessidade de políticas de proteção às populações mais vulneráveis, que sofrem com impactos desiguais e dramáticos em diferentes regiões do planeta e mesmo em diferentes regiões de um único país. Não me parece haver dúvidas que o negacionismo está na base do projeto do atual governo, um projeto de desmonte e destruição. As respostas à crise, as escolhas certas que devem ser feitas a partir de agora passam necessariamente por pensar em desigualdade, crise climática e transição energética. Não se trata mais de pautar as políticas brasileiras no discurso de defesa da soberania da Amazônia, ou simplesmente na exigência de dinheiro para manter em pé o que sobrou do que eles próprios destruíram. A soberania não está sob questionamento, isso é um espantalho como outros que esse governo esgrime em busca de suporte de sua base radicalizada. A pressão internacional se dá sobre políticas que não estão sendo implementadas e nem apresentadas em detalhes pelo governo para garantir a proteção dos biomas, zerar o desmatamento ilegal, proteger as populações indígenas e as populações mais vulneráveis.

Para não terminar sem apontar caminhos, propostas para o futuro, recorro à análise do economista Robert Pollin (2020, p. 149) sobre um Green New Deal Global. A urgente transição para economias de baixo carbono deve ter como base a construção de "novos investimentos em grande escala no aprimoramento radical dos padrões de eficiência energética e a expansão drástica da geração de energia renovável", o que resultaria também na criação de novos postos de trabalho. Neste gradual desmanche da infraestrutura de combustíveis fósseis, o Brasil poderia ter ganhos significativos a partir dos investimentos em energia limpa, ou seja, com um pequeno investimento do PIB em energia limpa anualmente poderiam ser criados milhões de novos empregos, investir na redução das desigualdades, combate à fome, redução do desmatamento ilegal e promoção do desenvolvimento sustentável.

O Brasil precisa de um projeto de desenvolvimento que aponte como e para onde o país deve crescer, formulado com a participação de diversos setores da sociedade. Para isso precisamos superar o negacionismo, nos fiarmos nas melhores evidências científicas, investir em pesquisa e inovação, planejar com consciência social e ambiental os gastos públicos, sem continuar sacrificando nosso capital natural, como bem coloca Ricardo Abramovay. Um projeto de desenvolvimento que direcione o país para uma economia menos intensiva em carbono e menos desigual não se realiza apenas colocando dinheiro nas mãos dos maiores responsáveis pela destruição dos nossos recursos e pelos ataques aos povos das florestas. É preciso comprometimento e participação verdadeiramente democrática; é preciso que as escolhas sejam diferentes se quisermos vislumbrar um futuro justo, democrático e mais humanista.

*Helena Margarido Moreira, professora de Relações Internacionais e Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo.