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Sobre o Brasil, as Nações Unidas e o multilateralismo

Assembleia Geral da ONU na sede da entidade, em Nova York - ONU/Evan Schneider
Assembleia Geral da ONU na sede da entidade, em Nova York Imagem: ONU/Evan Schneider

Colunista do UOL

28/09/2021 04h00

Por Cristina Soreanu Pecequilo*

De 2019 a 2021, assistir ao discurso brasileiro na sessão de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) tornou-se um fato recorrente que apresenta um ciclo de expectativa, conformidade e frustração e/ou satisfação.

Além da curiosidade, a expectativa deriva da esperança de mudança de rumos em um cenário de crise, à medida que a relevância deste rito diplomático poderia gerar a contenção de rupturas. A conformidade é a percepção de que a retórica se manteve: os que esperavam mudança se frustram, e os que não desejavam alterações mantêm a satisfação.

Esta situação não é novidade. Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), atravessando as gestões de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), Dilma Rousseff (2011-2016) e Michel Temer (2016/2018), a participação do Brasil na ONU e no sistema multilateral vem sofrendo de uma intensa polarização, à medida que a política externa é um retrato das divisões internas.

Tais divisões organizam-se em torno das disputas sobre o modelo social e de desenvolvimento: capitalismo de Estado x neoliberalismo, diversificação produtiva x reprimarização, secularismo x fundamentalismo, somente para citar algumas.

Em 2021, repetiu-se uma retórica multi nível, refletindo as diversas metas dos grupos de interesse que compõem a coalizão governamental. Três dimensões estiveram presentes: a político-social-cultural, a estratégica-diplomática e a econômica. Enquanto a primeira esteve associada aos temas da nacionalidade, soberania, negacionismo e conservadorismo, a estratégica-diplomática tendeu ao unilateralismo e às críticas, enquanto a terceira, a econômica, procurou descolar-se das demais.

Esta tática busca garantir os interesses brasileiros, principalmente dos setores exportadores de commodities, desconectar as parcerias de agendas radicais que possam prejudicar comércio e investimentos, e apresentar uma nação responsável diante do mundo. Enquanto isso, a realidade se impõe, em meio à pandemia e às instabilidades institucionais, pois não é possível apagar o passado, o presente e nem a sombra do futuro.

Estas múltiplas camadas retóricas não são exclusivas do Brasil à medida que outras nações, incluindo os Estados Unidos e a China, levam ao espaço da ONU, e de outras instituições, demandas associadas à pauta doméstica e seus objetivos estratégicos. Mais do que "falar à ONU e ao mundo", chefes de Estado e de governo dirigem-se a seus públicos internos e a seus adversários globais.

Este comportamento não se limita à abertura da AGNU, sendo uma ação sistemática que mina a cooperação. Cada vez mais a ONU e os alicerces do sistema multilateral construído no pós-Segunda Guerra Mundial em 1945 perdem espaço para instituições e alianças mais restritas, que permitem o exercício de interesses particulares com maior facilidade.

Esta dinâmica revela muito sobre a relação entre os Estados e o sistema multilateral, e a incompreensão sobre o que ele é e como funciona. Desde a sua fundação, este sistema alterna fases de consolidação, expansão e crise diretamente relacionadas aos compromissos assumidos por suas partes (os Estados membros).

Negociar é assumir a possibilidade de perder e ceder em nome do consenso, em um cálculo permanente de custos e benefícios, em um contexto que depende da convergência de interesses e princípios. Ainda assim, as falhas ou sucessos das organizações não são atribuídos a estes problemas de ação coletiva, mas sim a sua natureza: um instrumento de força para os poderosos, a voz dos fracos, uma soma fragmentada das partes ou entes autônomos que impõem sua vontade sobre as nações.

Destas percepções, a última justifica radicalismos, porém é a menos verdadeira. Raramente, ou quase nunca, uma organização é capaz de impor regimes ou embargos, a não ser que existam grandes potências envolvidas em uma relação assimétrica (vide o caso das tensões nucleares EUA e Irã). Predominam condicionalidades ou a condenação verbal.

O Brasil pode até ser citado como exemplo: independente das críticas recebidas sobre suas ações no campo ambiental e dos direitos humanos, o país retornará ao Conselho de Segurança das Nações Unidas como membro não permanente em cadeira rotativa no biênio 2022/2023 e até 2022 é membro do Conselho de Direitos Humanos. Afinal, o que é fato ou fake no sistema multilateral?

Ele é a convergência de todas as outras avaliações: a voz dos fortes, dos fracos, e uma soma de partes, sustentado pelo pragmatismo e idealismo, que garantiu canais de cooperação diplomática permanente e participação. Evoluiu, reforçando valores, incorporando membros e temas à medida que o sistema internacional se transformava, com o processo de descolonização afro-asiática, a ascensão dos emergentes e do Sul, o regramento sobre direitos humanos, meio ambiente, armas de destruição em massa e desenvolvimento até chegar a iniciativas como a Agenda 2030 que combinam as diversas faces do empoderamento global.

O multilateralismo nunca foi para os fracos, muito pelo contrário, foi sempre o sistema dos fortes: seja dos que impunham seu poder, seja dos que, independentemente de seu poder relativo, foram ouvidos. Quanto mais sucesso teve, mais se aproximou de seus dilemas porque, devido à resistência a mudanças, barradas por seus membros, é incapaz de se atualizar e se encontra estagnado.

Por mais curioso que seja, o presidente Trump (2017-2021), associado de maneira simplória ao unilateralismo, tinha razão: é preciso repactuar o sistema multilateral, atualizando seus mecanismos de governança e representatividade. Certamente, não falamos da repactuação que o ex-presidente pensava, mas sim de um sistema multilateral mais inclusivo e que reflita as realidades geopolíticas e geoeconômicas de poder do século 21. Esse é um caminho possível e necessário com o qual o Brasil poderia contribuir como parte de sua reconstrução.

*Cristina Soreanu Pecequilo é professora de relações internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)