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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O Campo de Públicas diante da crise brasileira

Vista do Palácio do Planalto, em Brasília -
Vista do Palácio do Planalto, em Brasília

Colunista do UOL

13/10/2021 19h11

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Vitor Marchetti*
Rayane Rodrigues**
Andréia Pereira***
Roberta Peres****

É com enorme alegria que escrevemos este texto inaugural para a coluna Diálogos Públicos. O objetivo deste espaço é construir um canal de debate e divulgação científica das pesquisas e reflexões dos profissionais do Campo de Públicas. Concebido por discentes (graduação e pós-graduação), egressos e docentes da Universidade Federal do ABC, este canal pretende ser não apenas de divulgação científica da Universidade, mas um veículo para pautar os mais diversos temas das políticas públicas em seus diferentes níveis: municipal, estadual e federal.

Antes de qualquer coisa, é preciso definir o que é o Campo de Públicas. Essa é a denominação dada ao Campo Multidisciplinar de Formação Acadêmica em Administração Pública, Gestão Pública, Políticas Públicas, Gestão Social e Gestão de Políticas Públicas. Sua articulação foi fruto da preocupação dos discentes, docentes e pesquisadores da área para melhor articular as ações de ensino, pesquisa e extensão para fazer frente aos desafios mais complexos das administrações públicas no Brasil.

Ainda que o espírito neste texto seja o de celebrar o início dos trabalhos de um espaço de debate, é impossível não começarmos refletindo sobre a crise pela qual passa o Brasil. Essa crise tem múltiplas dimensões, e não é reflexo apenas da pandemia que atravessou o globo. Boa parte dela tem sua origem em fatores bem brasileiros. Apenas para destacarmos as mais diretamente relacionadas ao Campo, o retrocesso na administração pública tem sido consistente e progressivo.

Perdemos em transparência pública. Uma das principais ferramentas de transparência que o Brasil construiu nas últimas décadas, a Lei de Acesso à Informação (LAI) sofreu sérias tentativas de limitação e reforma. O Decreto 9690/2019 ampliou o grupo de agentes públicos autorizados a colocar informações públicas nos mais altos graus de sigilo ultrassecreto (25 anos, renováveis por mais 25) e secreto (15 anos). A Medida Provisória 928/2020 suspendeu os prazos de atendimento a pedidos de informação determinados na LAI. Na prática, suspendeu a transparência passiva garantida pela LAI. Ambos os dispositivos foram revogados depois de pressões da sociedade civil. Eles revelam, contudo, uma clara disposição do governo federal em limitar a transparência pública.

Além disso, caiu substantivamente a porcentagem de respostas aceitas pela LAI. Eram 84% em 2012 e caíram para menos 67% em 2020. E, segundo a Transparência Brasil, não caíram apenas as respostas positivas aos pedidos, caiu também a qualidade da resposta. E o declínio da transparência não se limitou às tentativas de restrição da LAI. Foram diversos Ministérios e órgãos federais que criaram todo tipo de dificuldade de acesso ou censura a dados e estudos que contrariavam algum interesse imediato do governo federal. O caso mais flagrante foi a decisão do Ministério da Saúde de junho de 2020 de rever a metodologia de divulgação dos casos de COVID-19 no Brasil com a clara intenção de sonegar informações sobre a gravidade da evolução da pandemia. Depois dessa decisão que se formou um Consórcio de veículos de Imprensa para apurar e divulgar os dados no lugar do Ministério da Saúde, o que por si é revelador da crise de transparência pública que enfrenta o país.

Outra perda significativa foi o avanço do aparelhamento dos órgãos de controle. O caso mais emblemático desse amplo e complexo processo de domesticação dos órgãos de controle foi a tentativa do Presidente da República de interferir na escolha do diretor-geral da Polícia Federal (PF) o que provocou a saída do badalado ministro da Justiça Sérgio Moro. Outro importante órgão de controle que teve suas funções afetadas pela disposição do presidente em interferir em seus processos foi a Controladoria-Geral da União (CGU). Seu ministro, Wagner Rosário, foi incluído no relatório da CPI da COVID no Senado como investigado no caso da compra superfaturada de vacinas da Covaxin. A denúncia é que o ministro prevaricou diante de fortes indícios de corrupção no processo. De qualquer modo, sendo comprovado ou não a prevaricação, o ministro tem adotado uma postura pública de defesa das ações e medidas do governo federal que, no mínimo, são estranhas à liturgia de um cargo que tem como função principal garantir a lisura das ações governamentais.

Há diversos outros exemplos, que vão desde a passividade do Procurador-Geral da República até o número exorbitante de militares ocupando cargos civis. Em 2018, havia 2.765 membros das Forças Armadas nestes postos no Executivo federal. Em 2020, esse número saltou para 6.157, aumento de 122%. Esta enorme presença de militares em cargos civis indica um preocupante aparelhamento da administração pública por uma corporação.

Outra marca negativa dos últimos anos é a enorme desvalorização dos servidores públicos. Essa desvalorização acontece em diversas frentes, seja no discurso da alta administração, seja em medidas legais que desestruturam as carreiras e desmontam princípios importantes, como a estabilidade funcional.

Quando em fevereiro de 2020 o ministro da Economia Paulo Guedes chamou os servidores públicos de parasitas, ele não apenas revelava uma retórica desequilibrada, mas uma agenda de desmonte e desvalorização dos servidores. Sob o discurso da austeridade e da eficiência no emprego dos recursos públicos, o discurso governamental mira todos os servidores públicos quando é sabido haver uma enorme distorção salarial em que há uma ampla base com baixos salários e poucos incentivos e um topo bastante pequeno e privilegiado. Estudo do IPEA revelou que entre os aproximados 11,5 milhões de vínculos de trabalho no funcionalismo público do Brasil em 2018, metade recebia até R$ 2.727 e somente 10% recebia salário superior a R$ 8.984.

O ponto alto do ataque ao funcionalismo vem da Proposta de Emenda Constitucional 32/20, a chamada PEC da reforma administrativa. Além de excluir as categorias que formam hoje uma elite privilegiada em termos de salários e benefícios, como atores do Judiciário, Ministério Público e militares, a proposta cria a possibilidade de contratação temporária por até dez anos (praticamente eliminando a estabilidade funcional e expondo os cargos públicos às pressões políticas e ao patrimonialismo).

São muitos e diversificados, portanto, os problemas que o Campo de Públicas enfrenta hoje no país. O desmonte de diversas políticas públicas e a degradação das ferramentas de gestão nos fizeram retroceder em algumas áreas que tínhamos acumulado alguns ganhos nos últimos anos, mas, principalmente, mina nossa capacidade de enfrentar os complexos problemas do presente.

Ainda que o quadro não seja animador, esperamos que esse espaço seja útil para superarmos este momento e refletirmos de modo assertivo sobre a importância e as possibilidades de enfrentarmos nossas mazelas econômicas e sociais com uma administração pública democrática, eficiente e socialmente responsável.

*Vitor Marchetti é cientista político e professor da graduação e pós-graduação em Políticas Públicas da UFABC.

**Rayane Rodrigues é mestre em políticas públicas e doutoranda em Administração Pública e Governo na FGV.

***Andréia Pereira é bacharel em Políticas Públicas pela UFABC e Gestora de Inovação na Legisla Brasil.

****Roberta Peres é socióloga e Demógrafa, professora do bacharelado em políticas públicas da UFABC.