Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Um obituário para o Bolsa Família
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Leandro Ferreira*
Faleceu hoje, aos 18 anos, o Programa Bolsa Família em decorrência de complicações da medida provisória n. 1061/2021, assinada por Jair Bolsonaro em 10 de agosto deste ano. A própria MP agendou o óbito para 90 dias após sua publicação.
Nascido em 2003, o "Bolsa", como era chamado por milhões de seus beneficiários, despertou polêmicas, paixões, resultados e disputas políticas a seu respeito. Pejorativamente, foi chamado de "bolsa esmola" e considerado uma forma de compra de voto. Também foi acusado de gerar preguiça, vagabundagem e alta nas taxas de fecundidade entre quem precisava dele. Essas acusações, inclusive, foram extensamente propagadas pelo atual presidente da república, autor da MP, durante os anos em que foi parlamentar.
A infâmia, entretanto, foi desmentida por sucessivas pesquisas de rigor técnico e acadêmico, além da experiência social da população que sentiu forte melhoria em sua qualidade de vida. O Bolsa Família teve importância expressiva na redução da pobreza e da desigualdade em quase duas décadas de vida. Colaborou diretamente para a queda do índice de Gini de 0,581 em 2003 para 0,514 em 2015. Graças a ele, também se reduziram a evasão escolar e o trabalho infantil em todo o país, tal como se viu melhorias nos indicadores de saúde pública e segurança alimentar. A vacinação dentro do tempo correto também avançou em função do programa.
O Bolsa completou a maioridade no último dia 20 de outubro e, mesmo recém chegado à vida adulta, impactou diretamente a vida de ao menos 25% da população brasileira. O Banco Mundial, a ONU e dezenas de governos adotaram o programa como modelo para suas estratégias de enfrentamento à pobreza. Foi indicado a 3 prêmios de inovação no setor público e, com 10 anos, ganhou o prêmio da Associação Internacional de Seguridade Social por seu sucesso no combate à pobreza e na promoção de direitos sociais entre os mais vulneráveis.
Demorou, mas o Bolsa passou a ser bem aceito pela sociedade. Tão logo passou a ser uma estrela na luta contra a pobreza, teve sua paternidade amplamente disputada. Diferentes campos políticos passaram a reivindicar contribuições mais significativas para seu DNA. O Bolsa foi uma construção coletiva de uma família grande e quem conhece a história de perto sabe da importância de cada membro: a proposta de Imposto de Renda Negativo que tramitou no Congresso Nacional a partir 1991, os programas locais como o Renda Mínima de Campinas e o Bolsa-Escola do Distrito Federal, a criação do Bolsa Alimentação e do Bolsa Escola durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, até o Fome Zero e a unificação dos programas anteriores feita por Lula, que permitiu o nascimento e o crescimento do Bolsa.
Apesar das críticas a cada eleição nos anos de Lula, de 2014 em diante todo candidato a presidente do Brasil prometeu cuidar bem dele, fazê-lo crescer e ganhar importância. Bolsonaro, inclusive.
Esperava-se que o Bolsa Família retomasse sua posição ao fim da pandemia com mais força e alcançando mais pessoas, inspirando até uma expansão que o aproximasse de um modelo de renda básica universal. O Auxílio Emergencial, embora importante, sempre foi tido como medida temporária. Será difícil encontrar um substituto à altura do Bolsa Família.
Em seu lugar, entra o Auxílio Brasil, que nasce num cenário político e orçamentário tão caótico quanto seu desenho. Descendente direto do Bolsa, o Auxílio Brasil difere do seu antecessor por falta de identidade: promete resolver mil e uma coisas, mas não deixa claro seu objetivo fundamental, fontes de financiamento e público-alvo. Beneficiários do Bolsa não sabem quem poderá acessá-lo e tampouco quais valores serão pagos aos mais pobres. É certo que se o novo programa tivesse alguma consideração por seu parente mais próximo, evitaria contrapor-se à realidade e dependeria menos de interesses eleitorais e de gambiarras, especialmente aquelas que não deixam claro qual é o orçamento do programa.
Morto tão jovem, ninguém hoje tem dúvidas de que o Bolsa mudou o Brasil para melhor e se tornou exemplo no mundo inteiro. Inspirou toda uma geração de políticas públicas de transformação social. Seu legado não deve ser esquecido tão cedo por beneficiários, estudiosos e classe política.
Deixa 44 milhões de beneficiários, entre os quais 20 milhões de crianças e adolescentes.
* Leandro Ferreira é mestre em políticas públicas pela UFABC e presidente da Rede Brasileira de Renda Básica.
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