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A inacreditável volta da fome no Brasil

Prato vazio, pobreza, fome - iStock
Prato vazio, pobreza, fome Imagem: iStock

Colunista do UOL

17/11/2021 04h00

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Erick Brigante Del Porto*

Nos últimos cinco anos, a fome voltou a assombrar os brasileiros. Além de exposta no noticiário, a situação é visível nas ruas, nos centros das grandes cidades, nas periferias, nas quebradas ou nos confins das áreas rurais. Há pessoas em busca de restos, sobras, carcaças, bagaços, farelos e lixo.

Segundo a Escala Brasileira de Segurança Alimentar (EBIA), medida na última Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE (POF/IBGE), realizada em 2017/2018, quase 85 milhões de pessoas habitavam em domicílios com algum nível de insegurança alimentar. Destes, 10,3 milhões de pessoas encontravam-se em domicílios em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, fome. A prevalência nacional de segurança alimentar que havia atingido 77,4% dos domicílios do país em 2013 caiu para 63,3% em 2017-2018, numa brusca reversão da evolução positiva deste indicador observada desde 2004, início da série histórica.

Em dezembro de 2020, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), formada por pesquisadores, estudantes e profissionais de diversas áreas, realizou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (VIGISAN) no Brasil, utilizando versão reduzida da EBIA. Os números impressionam: mais de 116 milhões de pessoas conviviam com algum grau de insegurança alimentar, dos quais 43,3 milhões não tinham alimentos suficientes e 19 milhões passavam fome.

O estudo reanalisou as medições feitas pelas EBIA das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio (PNAD/IBGE) nos anos de 2004, 2009, 2013 e pela POF/IBGE de 2017-2018, para que fosse possível compará-las com os resultados encontrados no inquérito VIGISAN de 2020. Uma das conclusões foi a de que a reversão da situação de segurança alimentar observada após 2013 foi agravada pelos efeitos da pandemia de Covid-19. A crise econômica vivida desde meados da década de 2010 com alto desemprego, endividamento das famílias e perda ou queda de renda, associada, posteriormente, à crise sanitária reverteram o aumento progressivo do número de domicílios em segurança alimentar - um grave retrocesso.

Fonte: Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, Vigisan, Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Disponível em http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf

Ainda que de forma muitas vezes errática, e com períodos marcados por marchas e contramarchas, avanços e retrocessos, o governo brasileiro buscou ao longo do tempo implementar políticas públicas voltadas ao enfrentamento da fome e da má alimentação.

A trajetória recente de um conjunto articulado de ações e políticas daquela natureza - entre eles o Programa Bolsa Família, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Cisternas, combinada a um período de crescimento econômico vivido desde os anos 2000, com a ampliação do emprego formal, o aumento do salário mínimo e da renda, possibilitou que, em 2014, a Organização das Nações para a Alimentação e a Agricultura (FAO) anunciasse, quando do lançamento de seu Relatório Anual sobre o Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo, que o Brasil havia saído do Mapa da Fome, o que significava que o percentual da população em situação de subalimentação estava abaixo de 5%.

No entanto, essa trajetória bem-sucedida começou a ser revertida a partir de 2015, com dois anos seguidos de forte queda do PIB, seguido de estagnação econômica, alta do desemprego e queda de renda. Além disso, o orçamento destinado a alguns dos programas voltados à inclusão social e produtiva, como o PAA e o Programa Cisternas, foi substancialmente reduzido. Já o Programa Bolsa Família, ainda que tenha contado com um ou outro reajuste, não incorporou as perdas decorrentes do crescimento dos preços, especialmente dos alimentos, e não absorveu um número significativo de famílias, mesmo que estas atendessem aos critérios de inclusão, o que acarretou na criação de fila de espera. Desde então, os indicadores de segurança alimentar passaram a apresentar significativa piora como vimos.

Em meio a esse cenário bastante difícil, eis que, em 2020, as medidas emergenciais de enfrentamento da Pandemia de Covid-19, especialmente as de paralisação das atividades para obrigar o distanciamento social, contribuíram para agravar a crise econômica brasileira - e, consequentemente, da situação de insegurança alimentar de grande parte da população.

A criação do Auxílio Emergencial, em curto espaço de tempo, só foi possível graças à ampla experiência brasileira com programas de transferência de renda, aos sólidos registros administrativos e bases de dados do governo federal, além da criação de solução pela internet e por aplicativo que proporcionaram o descobrimento dos chamados "invisíveis". O Auxílio chegou, em 2020, a mais de 68 milhões de pessoas, transferindo a elas cerca de R$ 294 bilhões, o que permitiu um alívio temporário nas difíceis condições de vida de milhões de brasileiros. O Auxílio Emergencial, que foi descontinuado no início de 2021 e posteriormente retomado, embora com valores menores, está agora chegando ao fim.

Desta forma, milhões de brasileiros que não se encontravam no Programa Bolsa Família podem ficar sem garantia de uma renda que os afastem da fome, já que o desemprego permanece em altos níveis e os preços, especialmente dos alimentos, estão em alta.

Enquanto isso, em agosto último, o governo federal enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória nº 1061/2021 instituindo o Auxílio Brasil, em substituição ao Bolsa Família. Ainda em tramitação no Congresso Nacional, especialistas alertam sobre a falta de clareza nas medidas propostas relativas à definição das linhas de pobreza e, portanto, sobre a cobertura do programa, sobre a composição dos valores dos benefícios e de um eventual mecanismo de correção, além da falta de uma fonte permanente e estável de financiamento do programa. Há dúvidas também quanto aos benefícios adicionais criados com outras finalidades (mérito esportivo, acadêmico, apoio à inclusão produtiva rural e urbana), pois eles podem acabar por dispersar recursos e sobrepor ações, colocando em risco a finalidade e a solidez do antigo Bolsa Família que, ainda que tivesse que ser ampliado e aprimorado, vinha sendo fundamental para a rede de proteção social dos mais vulneráveis.

Portanto, em um contexto crônico de crise econômica, ainda associado às incertezas dos caminhos da Pandemia de Covid-19, é urgente ampliar as políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, com a recomposição de seu orçamento e de seu público, com atenção especial à transferência de renda, numa ação que tenha abrangência e bases estáveis, priorizando a vida e a dignidade das pessoas. Além da ainda incerta substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil, também preocupa a ausência de arranjo institucional próprio que promova a governança e a execução coordenada e articulada do conjunto de políticas públicas de enfrentamento da fome e da extrema pobreza. O Brasil conta com vasta experiência, recursos e capacidades para realizar o enfrentamento urgente da fome que aflige milhões de brasileiros. Urge que o faça. A fome não espera.

* Erick Brigante Del Porto é economista, mestre em desenvolvimento econômico e atua como Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.