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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Accountability anti meteoro

Divulgação/Netflix
Imagem: Divulgação/Netflix

Colunista do UOL

02/01/2022 19h24Atualizada em 02/01/2022 19h24

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Marcus Braga*

Daniel Caldeira**

Inicialmente, cabe esclarecer que o texto tem, ainda que de forma leve, spoilers sobre o filme "Don't look up" (Não Olhe Para Cima/Netflix), e uma melhor compreensão das reflexões aqui apresentadas se faz de forma mais adequada para os que assistiram esse filme.

Accountability é um anglicanismo que ainda não encontrou o seu correspondente ideal na língua portuguesa. Muitos utilizam essa pomposa expressão como transparência, outros como prestação de contas, mas poucos como responsividade, uma expressão mais fiel à sua ideia raiz.

Em 1990 a questão da tradução desse termo no Brasil foi objeto de difundido artigo (1), complementado por outro texto em 2009 (2), e ambos, apesar de reconhecerem avanços e se mostrarem esperançosos, são convergentes no sentido de que esse conceito ainda não se enraizou em nossa sociedade, opinião que persiste, passados mais de 30 anos do primeiro texto.

A ideia de accountability é um verdadeiro suco de democracia liberal, derivado de ideias de limitação dos governantes nos pesos e contrapesos da tradição de Montesquieu e dos federalistas estadunidenses, se relacionando, modernamente, a manutenção de indivíduos e instituições responsáveis pelo seu desempenho, o que implica, naturalmente, a existência de atores específicos para instrumentalizar essa accountability, com funções relacionadas a ações de controle.

Mais do que um ator, uma rede de atores com essa função, nominados tribunal de contas, ministério público, poder legislativo, controladorias, entre outros modelos e formatos pelo mundo, e que contemplam estruturas formais, burocráticas e especializadas, mas também ações relacionadas à participação popular, com seu natural improviso. Atores que atuam para promover essa accountability, ainda que, por vezes, não o saibam bem, como uma decorrência dessa questão já tratada da tradução desse conceito de forma viva.

Fazem parte da gramática da accountability (3) a transparência das decisões/ações e a justificação explícita desses atos; o que se obtém pela disponibilização de dados prevista no conceito de acesso à informação, bem como na atuação técnica avaliativa de ações de auditoria governamental, que traduzem essas ações em opiniões sintéticas sobre a sua pertinência. Mas, compõe também o conceito de accountability a capacidade desses atores em forçar os governantes ao cumprimento do estabelecido, o que passa pela sanção, inclusive na esfera eleitoral, na ideia de enforcement.

Após este intróito conceitual, necessário, esse texto chega ao seu objeto de análise, a presença da discussão de accountability no filme "Don't look up" (Não Olhe Para Cima), escrito e dirigido por Adam McKay, e lançado de forma estrondosa pela Netflix na véspera do Natal de 2021, e que faz uma sátira caricatural da questão do aquecimento global, e que aborda transversalmente temas de nossa época, na política e nas relações sociais.

Faz-se necessário, para além das discussões que têm sido trazidas pelo filme, esse olhar particular da questão da accountability, dado que o filme traz um grande problema global, a vinda de um meteoro, e apresenta um cenário de como esse arranjo político, e os mecanismos existentes para fazerem ele funcionar, falharam na condução de soluções viáveis para dar conta do problema, o que resultou no fracasso e suas consequências para a raça humana.

Os atores da rede de accountability tem uma participação nula ou tímida na sequência de eventos do filme, sem referências explícitas à atuação de equivalentes a suprema corte ou o ministério público, e com tímida interação do legislativo nas questões, mostrando a debilidade dos mecanismos de monitoramento das ações dos governantes e mais ainda, de pressão para fazer o que precisava ser feito, inclusive a popular. Os goleiros do jogo não aparecem no filme, seja pela dimensão da participação social, seja pela ação das estruturas formais.

E isso tudo se complica no contexto trabalhado de forma central no filme, da dificuldade de se estabelecer consensos, de múltiplas versões, o que dificulta a promoção da accountability, que precisa de uma certa clareza do que é problema e do que se demanda como solução, o que quebra a ação de atores em rede, que já padecem de problemas naturais de coordenação, pelo seu desenho de autonomia e complementaridade.

Sob essa ótica específica, pode se dizer que a fragilidade da accountability naquele contexto contribuiu com a sequência desastrosa de eventos que conduziu a queda do meteoro no planeta Terra. Estaria essa nossa forma de promover a accountability sendo efetiva nesse mundo novo de tecnologia e fluidez das relações, como mostrado no filme, ou algo precisa mudar? A crise da democracia liberal (4) nesse século XXI se reverte, consequentemente, em uma necessidade de se repensar a accountability, aquela que ainda nem foi traduzida diretamente na Terra Brasilis?

É possível manter a crença de que a accountability pode nos proteger de meteoros, e de outros riscos globais emergentes (5) no mundo atual, ou esta se tornou uma abordagem embolorada, natimorta, e que não consegue enfrentar os desafios de um mundo globalizado, tecnológico e frenético? Profundas reflexões que o filme nos traz nas entrelinhas.

De fato, a rede de accountability não funcionou adequadamente no filme. Naquela confusão, não se encontraram e não lograram impor limites aos atores que detinham esse papel. Ocorre que, os mecanismos ligados à participação social de accountability também não funcionaram, perdidos entre uma discussão sobre verdades e versões, com arremetidas de temas transversais e próprios do microcosmo do jogo político.

A discussão da accountability em questões relacionadas à temática aeroespacial, à qual foi encampada por estes autores, não é propriamente uma novidade, surgindo, inclusive em outros filmes, como "Perdido em Marte" (Ridley Scott/2015). Para tanto, cabe rememorar que essa perspectiva foi objeto do estudo de Romzek e Dubnick (6), ao se debruçarem sobre os fatores institucionais da Agência Espacial Americana (Nasa) que contribuíram para a explosão do ônibus espacial Challenger, tragédia ocorrida em 1986.

Nesse trabalho, os pesquisadores estadunidenses observaram que a falta de capacidade organizacional da Nasa para lidar com as pressões advindas do contexto sócio-político que a cercava, acabou por moldar um desequilíbrio do arranjo interno, com a precedência e a prevalência de salvaguardas para o atendimento de expectativas e prioridades políticas em detrimento de fatores-chave de segurança relacionados aos aspectos gerenciais, legais e profissionais. Uma tensão entre a técnica e a política.

O filme trabalha essa tensão de forma interessante. A mensagem do filme é que diante de um risco global emergente, o cenário do século XXI, objeto de críticas diretas no mesmo filme, traz uma forma nova de fazer política, de lidar com as questões cruciais da sociedade, imersa em memes, dúvidas e polêmicas, trazendo a tensão entre a verdade científica e os interesses políticos para a arenas de luta.

Mas, há um plot twist no filme que talvez dê um insight sobre as adaptações necessárias a accountability nesse assustador mundo novo, quando o Dr. Randall Mindy e Kate Dibiasky, ao verem no céu o cometa, como uma evidência a olhos vistos, provocam a campanha "olhe para cima", usando das armas daquele tempo, com memes, vídeos e até a famosa cantora vivida por Ariana Grande trazendo uma música de sensibilização sobre o problema. Uma estratégia que se mostrou efetiva na mobilização das pessoas para o tema e representou uma virada de mesa.

A accountability, que pode ser uma relação que tem se mostrado com certo grau de disfuncionalidade nos tempos atuais, pode necessitar de um aggiornamento que contemple esse mundo do século XXI, sua forma de realizar o diálogo público, o processo decisório, e consequentemente, a maneira de dar transparência das decisões/ações e a justificação explícita dessas, com a competente sanção dos desvios. Os problemas reais, desaparecidos no filme diante de escândalos sexuais e fofocas de relacionamento, só alcançam seu lugar ao sol à luz das evidências revestidas de uma abordagem específica de comunicação da campanha "olhe para cima".

A accountability do século XXI precisa fugir da ilusão da tecnicidade apolítica ou a busca de adotar estratégias antigas para esse novo modelo de sociedade. A internet, as redes sociais, e uma série de mudanças sociais tiveram profunda influência na forma de fazer política, de relação entre as instituições e entre essas e a sociedade, e isso afeta diretamente as ações que buscam fazer a máquina funcionar, se prevenindo de abusos e disfunções, e mais do que ser traduzida para a língua portuguesa, a accountabilty precisa dialogar com esse mundo novo, que ainda é muito assustador. Mais que um meteoro.

*Marcus Braga é doutor em políticas públicas (PPED/IE/UFRJ) e atualmente realiza estágio pós-doutoral no Instituto de Saúde Coletiva (IESC/UFRJ)

**Daniel Caldeira é doutorando em Administração Pública na Universidade de Lisboa.

Referências bibliográficas:

  1. CAMPOS, Ana Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, v. 24, n. 2, p. 30-50, 1990. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/9049

  2. PINHO, Jose Antonio Gomes de; SACRAMENTO, Ana Rita Silva. Accountability: Já podemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, v. 43, n. 6, p. 1343-1368, 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rap/a/g3xgtqkwFJS93RSnHFTsPDN/?lang=pt

  3. SCHEDLER, Andreas. Conceptualizing Accountability. In: Schedler, A.; Diamond, L.; Plattner, M. The Self-Restraining State: Power and Accountability in New Democracies. Lynne Rienner Publisher, 1999. P. 13-27.

  4. PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

  5. BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2010, 384 p.

  6. ROMZEK, B. S., & DUBNICK, M. J. (1987). Accountability in the Public Sector: Lessons from the Challenger Tragedy. Public Administration Review, 47(3), 227-238. https://doi.org/10.2307/975901