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As variedades do conceito democrático e os seus inimigos

Mais de 7 mil pessoas acompanharam a leitura da carta pela democracia no largo São Francisco, em São Paulo - Folhapress
Mais de 7 mil pessoas acompanharam a leitura da carta pela democracia no largo São Francisco, em São Paulo Imagem: Folhapress

Colunista do UOL

25/08/2022 11h18

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Sidney Jard da Silva *

Entre as condições da democracia, a menos lembrada é que ideias erradas sobre democracia fazem a democracia dar errado. Giovanni Sartori

O ato solene de leitura da "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito", que reuniu milhares de pessoas nas arcadas do Largo São Francisco, no último dia 11 de agosto, e os milhões de signatários deste histórico documento expressam a heterogeneidade e a complexidade do conceito democrático nas suas mais variadas dimensões econômicas, políticas e sociais.

"Democracia é um conceito contestado", nos ensinou o filósofo Frank Cunningham. Muito embora a civilização ocidental afirme a democracia como a mais alta forma de organização política, há muito pouco consenso sobre o que o termo significa, o que descreve e o que prescreve. Nas palavras de um outro grande pensador da teoria democrática, Giovanni Sartori, vivemos "numa era de democracia confusa".

Isso significa que por maior que seja o nosso esforço intelectual para compreendê-la e defini-la, esta compreensão e definição sempre estará sujeita à crítica, ao questionamento, à contestação. O significado da palavra democracia, assim como o próprio regime político que ela descreve, representa e normatiza é eminentemente afeito à controversa.

Há mais de 2000 anos filósofos e cientistas políticos, entre tantos outros pensadores, se dedicam a teorizar o que a democracia "exprime", o que "é" e o que "deveria ser". Não obstante, tanto no que se refere à sua essência descritiva quanto à sua valorização prescritiva, a democracia dos antigos e a democracia dos modernos, para utilizar a famosa distinção de Norberto Bobbio, guardam pouca relação entre si. Dificilmente, um filósofo das formas clássicas de governo chamaria de democracia os regimes políticos predominantes no mundo moderno. Com alguma generosidade, não passariam de formas mistas, contemporaneamente batizadas de poliarquias.

Neste ponto, o modelo de análise das teorias democráticas propostas por Frank Cunningham parece ser particularmente útil para representarmos, com maior precisão, o nosso multifacetado conceito. De acordo com o referido esquema analítico, a democracia pode ser pensada e teorizada em três dimensões distintas. Primeiro, a dimensão semântica que se limita a uma descrição literal ou etimológica da palavra. Muito embora seja uma acepção transparente, objetiva, concisa, há relativo consenso entre os teóricos de que este tipo de definição pouco contribui para compreendermos o que a democracia descritivamente "é" e prescritivamente "deve ser". Dizer que a democracia "é o governo do povo", ajuda muito pouco na compreensão da "democracia real" e na proposição da "democracia ideal". A começar pela própria armadilha da polissêmica definição de "povo": os muitos, os pobres, a massa, a ralé.

Já a segunda dimensão, descritiva, avança no sentido de investigar o que a democracia efetivamente representa. Quais governos, instituições políticas, organizações sociais podem, de fato, ser considerados democráticos? Como as democracias reais funcionam? Quem governa, o que governa e como governa? Risco latente neste tipo de definição é reduzir a democracia aos seus instrumentos de formação de maioria e tomada de decisão. A democracia meramente procedimental.

Neste ponto, é importante ressaltar, como também o faz Giovanni Sartori, que dificilmente somos capazes de dizer o que a democracia "é" sem, ao mesmo tempo, dizer o que a democracia "deve ser"; o que equivale a admitir que por mais "científicos" que sejamos em nossa descrição, ela sempre estará contaminada pelos valores políticos, ideológicos e morais que compartilhamos.

Finalmente, a dimensão prescritiva refere-se à própria valorização da democracia enquanto regime político em oposição aos regimes autoritários e totalitários. A definição de normas valorativas para chegar à melhor forma de governo, à democracia verdadeira, à democracia ideal; ainda que sob o risco, não menos perigoso, de transformar a democracia em uma inspiração teórica e metodológica inacessível, uma utopia política, distante da realidade e das possibilidades humanas.

Considerando estas três dimensões possíveis da epistemologia democrática, o nosso objeto de análise de forma alguma se limita ao significado literal da palavra democracia: o teoricamente inócuo, mas não empiricamente inofensivo "poder do povo". Por outro lado, também não temos a ambição normativa de dizer o que a democracia "deveria ser"; muito embora a nossa reflexão, tal como nos alerta Giovanni Sartori, possa involuntariamente desviar-se por este sedutor caminho. Mas trata-se, neste caso, de assumir um risco conscientemente e não um objetivo inconscientemente.

Assim, nos resta como objeto de estudo, bem ao gosto da ciência política, mas distante das reflexões filosóficas, investigar o que a democracia efetivamente "é"; o que representa, como funciona; como se relaciona com outras dimensões relevantes da sociedade e quem são, hoje, os seus principais inimigos. Neste aspecto, também seria importante considerarmos as dimensões organizacionais da democracia, sintetizadas por Giovanni Sartori em macrodemocracia política e microdemocracias econômicas e sociais, estas últimas representadas por uma infinidade de sub-dimensões subordinadas à primeira.

Na mesma linha de argumentação, Norberto Bobbio elegeu a expansão do processo de democratização da esfera política para as esferas econômica e social como a principal tarefa do mundo moderno. Na visão otimista deste autor, os principais desafios da democracia política já teriam sido alcançados: voto universal, liberdade de expressão, direito à oposição, regras estáveis e resultados alternantes.

Assim, o desafio moderno seria expandir os métodos democráticos para além da democracia política, ou seja, para as esferas de atividade e de organização econômicas e sociais que ainda resistem ou apenas absorvem parcialmente, e parcamente, os princípios democráticos.

Esta proposição teórica é um caminho interessante para pensarmos as relações democráticas no mundo contemporâneo. O quanto às discussões sobre política e sociedade são efetivamente pautadas por princípios democráticos, sobretudo, pelo respeito à opinião do outro enquanto cidadão pleno de direitos civis, políticos e sociais? Ou, inversamente, o quanto este debate é pautado, hoje, por posturas refratárias à extensão dos princípios orientadores da macrodemocracia (política) para as microdemocracias (econômica e social)?

Em síntese, tal como colocado anteriormente, o desafio é pensar a interação economia, política e sociedade em sua dimensão descritiva, no sentido de captar o quanto os métodos democráticos (ainda que imperfeitamente praticados) são norteadores do discurso e da ação no campo econômico e social (ainda que imperfeitamente democratizados). Evidentemente, não se trata aqui, de forma alguma, de se estabelecer relações hierárquicas e heterônimas entre estas distintas dimensões, mas sim de buscar o conteúdo democrático de suas interações.

De fato, até muito pouco tempo atrás, este parecia ser o grande desafio teórico e metodológico das democracias contemporâneas, nem maior nem menor do que o daquelas que as antecederam; mas um tanto quanto mais complexo e ambicioso ao se propor como tarefa a constituição de um eixo explicativo que reúna os conceitos de economia, política e sociedade em uma única dimensão descritiva capaz de capturar a tendência e o sentido da interação democrática entre estes três elementos multidimensionais da vivência humana. Nas palavras de Norberto Bobbio, caminhar "da democratização do Estado à democratização da sociedade."

Contudo, este desafio se torna muito complexo quando forças antidemocráticas emergem em diferentes partes do globo terrestre. Do rico hemisfério norte ao pobre hemisfério sul, líderes nacionalistas e populistas exalam grande desprezo pelos princípios do Estado Democrático de Direito: Donald Trump, nos Estados Unidos; Vladimir Putin, na Rússia; Marine Le Pen, na França, Matteo Salvini, na Itália; Narendra Modi, na Índia; Tayyip Erdogan, na Turquia; Viktor Orbán, na Hungria. E tantos outros que, para utilizar uma expressão portuguesa muitas vezes referidas ao extremista André Ventura, "não merecem a pena".

Assim, passado um breve interlúdio em que muitos teóricos da democracia apostavam que ela não tinha mais adversários; mais uma vez, a teoria democrática precisa ser revisitada. No mundo atual nosso principal desafio não é mais, como ingenuamente pensaram renomados intelectuais do século passado, expandir os métodos da democracia política (macrodemocracia) para as esferas das atividades econômicas e sociais (microdemocracias); mas sim, novamente, defender o próprio regime democrático dos sistemáticos ataques dos seus antagonistas internos. Inimigos que, erroneamente, julgamos fazer parte de um distante passado antidemocrático.

* Sidney Jard da Silva, Cientista Político, Professor do Bacharelado em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (BPP/UFABC).