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Diálogos Públicos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Semipresidencialismo à francesa: é esse o caminho?

Colunista do UOL

15/09/2022 11h30

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Celina Pereira*

Denilson Bandeira Coêlho**

Como soluções de compromisso entre ganhadores e perdedores provisórios, democracias dependem de certo equilíbrio endógeno para vingarem[1]. Suas regras eleitorais são escolhas feitas no tempo e no espaço, ou seja, possuem história, propósito e dizem muito da identidade de cada povo. Além de representar a heterogeneidade e pluralidade do eleitorado e responder às demandas sociais, cabe ao sistema político distribuir papéis nos processos decisórios sem, no entanto, inviabilizar o ato de governar.

Em estágio probatório desde 1988 com a promulgação da Constituição Federal, nosso modelo político tem dado sinais de fadiga de material. Por lógica, sobreviver é condição, mas os sistemas precisam entregar mais. Nos últimos anos, além do sentimento de déficit de representação, há indícios de ineficiência no funcionamento do arranjo político brasileiro, que opera com alto custo de transação na tomada de decisão além de perpetuar um processo não efetivo de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas [2]. A revisão sistemática da literatura e estratos da burocracia federal weberiana vêm recorrentemente apontando a necessidade de ajuste na provisão de bens públicos. Afinal, estão em jogo nossas vidas e a escolha do tipo de sociedade ideal.

Como já posto por Easton [3], o sistema político está sempre sobrecarregado e pressionado a dar respostas para demandas novas, tradicionais e recorrentes. Os temas vão de provisão de bens e serviços públicos a alterações nas próprias regras do jogo eleitoral. Com o congestionamento da agenda parlamentar o desafio é então estabelecer um desenho institucional equilibrado. Nessa esteira, a Câmara dos Deputados instituiu recentemente comissão para discutir a adoção formal de algo nos moldes do semipresidencialismo presente na França. No sistema francês o presidente divide poder com o primeiro-ministro, escolhido pelo Congresso. Assim, o governo responde simultaneamente ao Executivo e ao Legislativo.

Uma comparação preliminar entre os dois casos revela características curiosas. Tanto no Brasil quanto na França vigoram presidencialismos fortes, em que pesa muito a caneta do chefe do Executivo. Os presidentes detêm acentuado poder legislativo e decisório em matérias como orçamento e administração pública. Depreendemos que em ambos os sistemas as forças políticas tradicionais foram explicitamente desafiadas nas últimas eleições majoritárias. Nas duas conjunturas, abriu-se espaço para partidos que se declararam "diferentes de tudo isso que está aí".

No caso francês, os eleitores escolhem o presidente, mas os titulares dos ministérios vêm do Congresso e são chefiados pelo primeiro-ministro. Mesmo assim, não se trata exatamente do meio termo entre parlamentarismo e presidencialismo, dada a centralidade e as prerrogativas da figura presidencial.

Voltando às origens, o semipresidencialismo foi criado na França em 1958 para superar as fragilidades institucionais da IV República[4], cujos governos duravam em média seis meses. O modelo não é imune à divisão política interna, podendo levar ao extremo de ter presidente e primeiro-ministro de partidos distintos [5].

Para induzir a escolha de uma Assembleia sintonizada com o Executivo, a saída adotada pelos franceses foi alterar a Constituição. Reduziu-se o mandato presidencial de 7 para 5 anos, igualando-o ao dos parlamentares. E as eleições legislativas foram remanejadas para um mês após a corrida presidencial.

Após seis décadas de experimentação o eleitorado francês ainda tem dado alguns recados nas urnas. O termômetro acusou calor intenso nas últimas corridas presidenciais, com indubitável mensagem aos partidos tradicionais. Em junho, o presidente Emmanuel Macron foi reeleito no segundo turno com 58% dos votos. Pela segunda vez consecutiva e respaldada pelo discurso "antissistema", a oposição de extrema-direita chegou de forma especialmente competitiva à reta final do pleito com aproximadamente 42% da preferência eleitoral.

Nas recentes eleições legislativas, a aliança de apoio a Macron perdeu a maioria absoluta, fato inédito desde 2002, embora com a maior parte dos votos (38%). Destaque para a performance da coligação de partidos de esquerda, liderada por Jean-Luc Mélenchon, com 31%, e para a extrema-direita puxada por Le Pen, que chegou à marca de 17%.

O ponto de interesse aqui é indagar por que o sistema francês também passa por calibragem de tempos em tempos. Por exemplo, flerta-se com o sistema proporcional e a redução do número de distritos nas eleições legislativas - movimentos no sentido do que se tem hoje no Brasil. Por lá, indaga-se também acerca da regra majoritária de dois turnos. Como um efeito das falhas de sistema, cresce cada vez mais, tanto na direita quanto na esquerda francesa, o debate sobre uma reforma rumo ao presidencialismo norte-americano ou aos regimes parlamentares europeus[6]. Tal como ocorre aqui, as peças e engrenagens do sistema político ainda carecem de ajuste configuracional para minorar o trade-off entre governabilidade, representação e responsividade vide às demandas do eleitorado.

Do nosso lado, o arranjo é fértil em pontos de veto. Adotamos a junção entre presidencialismo, pluripartidarismo e eleição proporcional para a Câmara dos Deputados - combinação lenta e custosa estabelecida pela Constituição de 1988. A receita já indicava alto potencial explosivo na sua origem, conforme previsto por Sérgio Abranches em seu artigo seminal[7]. Com tanta diluição de poder - reforçada pelo nosso federalismo peculiar onde os três entes federativos são autônomos - todos os presidentes travam disputas permanentes por maiorias de apoio em cada votação ou jogada política, sob pena de imobilidade do governo.

Em termos do modus operandi, os atores políticos nacionais atuam sob a ótica do dissenso pós-consenso. Os efeitos do atual modelo são nocivos uma vez que a elegibilidade das prioridades e o desenho das políticas públicas, via de regra, resultam em paralisia decisória. Verificada a debilidade institucional, como mudar o status quo? Depreendemos que o método da comparação é a melhor forma de entender o caso brasileiro. Portanto, numa perspectiva comparada, observa-se que democracias liberais estão em xeque no atual cenário global. O paradoxo está entre pensar como mesclar soluções endógenas e ideias de modelos consolidados em outros países.

Argumentamos que a disfuncionalidade do sistema nacional é um problema de dependência de trajetória. Optamos em 1988 por uma democracia de consenso. Significa priorizar o pluralismo como vetor resultante das nossas miscelâneas sociais e interesses em jogo, com partilha do poder, tônica natural daquele contexto de saída da ditadura militar. Após pouco mais de três décadas de um processo cumulativo de aprendizado político e institucional ou "democracia por tentativa e erro"[8], claramente o caminho que irá direcionar o país para a funcionalidade ainda não foi percorrido.

Há também outros fatores concorrendo para nosso estado de coisas e a continuidade do modelo de anarquia organizada (garbage can model). O cenário econômico já era delicado e se agravou após a pandemia. Além disso, nossas instituições políticas foram colocadas à prova e saíram desgastadas do processo de descrédito nos últimos anos. Isso reverberou, claro, sobre o jogo democrático e abalou a confiança da população.

A partir de uma mudança incremental, o Congresso nunca teve tanto controle sobre os recursos federais como agora. As emendas obrigatórias já inibiam a margem de ação do governo. A partir do incremento significativo do orçamento do relator, o espaço para gastos discricionários do Executivo foi substancialmente reduzido. Setores da mídia, oposição e analistas têm apontado que a ausência de publicidade e accountability, aumentam a chance de diluição dos recursos em microdemandas paroquiais, o que resulta na diminuição de investimentos nas pautas de interesse nacional.

Relembrando a história, em 1993, o plebiscito confirmou a opção pelo sistema presidencialista. Seria o momento para uma grande reforma eleitoral? Tivemos apenas duas transmissões de faixa entre Presidentes eleitos[9]. São mais de vinte partidos na Câmara dos Deputados. Num cenário otimista de disciplina partidária, são mais de duas dezenas de frentes de diálogo para negociação de emendas, cargos e recursos, sob pena de bloqueio da agenda.

O modelo tenta se equilibrar na corda bamba entre dois extremos disfuncionais - paralisia, de um lado, e ilegalidade, do outro. Sem alianças pluripartidárias, há o perigo do "presidencialismo em colisão" com o Congresso. Se se cede muito, o sistema pode se perder na direção de um "presidencialismo de corrupção". Infelizmente, no ambiente multipartidário, esses efeitos estão praticamente dados, qualquer que seja a roupagem do sistema - parlamentarista ou presidencialista. Não parece fazer muita diferença nesse aspecto.

A saída à francesa, coincidentemente na linha do que tem sido feito na França, passaria menos pela mudança brusca de sistema e mais pelo incrementalismo. É hora de um consenso entre as elites políticas, devidamente construído juridicamente, em prol, no nosso caso, da racionalização do nosso sistema partidário. Não rumo a um bipartidarismo - pouco aderente ao nosso tecido social - mas algo que enfrente as disfuncionalidades do modelo atual.

O caminho já foi sedimentado, mas o tema precisa ser levado a sério: normas mais duras de cláusulas de barreira e forte estímulo a uniões partidárias de caráter mais permanente - não só antes, mas sobretudo após as eleições. A regra das federações é importante passo nesse sentido.

Para alguns, as instituições estão em pleno funcionamento. Segundo o atual Presidente da Câmara, "finalmente está funcionando o semipresidencialismo que estava previsto na Constituição Federal, mas não era adotado na prática"[10]. Preferências e interesses à parte, estamos hoje mais distantes daquilo que nossos constituintes desejaram - e desenharam - lá em 1988.

*Celina Pereira é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Doutoranda e Mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília.

**Denilson Bandeira Coêlho é Professor e Coordenador da Graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília e Pós-Doutor pelo Departamento de Governo na Universidade do Texas em Austin.

***Esse texto é fruto de parceria entre a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) e a Coluna Diálogos Públicos.

Referências:

[1] Para uma análise do processo de enfraquecimento e deterioração das democracias no mundo, ver LEVITSKY, Steven e Daniel ZIBLATT (2018). "Subverting democracy", em How democracies die. New York: Crown.

[2] Desenvolvemos estudo quantitativo que identificou decréscimo da governabilidade entre 1995 e 2016. Ver PEREIRA, Celina. Medindo a governabilidade no Brasil: o presidencialismo de coalizão nos governos FHC, Lula e Dilma. 2017. 87 f., il. Dissertação (Mestrado em Ciência Política)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017. Acesso em https://repositorio.unb.br/handle/10482/23942. Disponível em https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/23942/1/2017_CelinaPereira.pdf

[3] Easton, David., 1957. An Approach to the Analysis of Political Systems. World Politics, vol.9, nº 3. pp. 383-400.

[4] Iniciada em 1946, no pós-II Guerra Mundial.

[5] O fenômeno é denominado "coabitação" e ocorreu três vezes desde 1958: entre 1986 a 1988, com Mitterrand e Chirac; de 1993 a 1995, com Mitterrand e Balladur; e de 1997 a 2002, com Chirac e Jospin. Cf. BENETTI, Julie. Le président de la République. Institutions et vie politique sous da Ve République. Michel Verpaux (coord.). Paris, 2012

[6] FRANÇOIS, Bastien. Le Régime Politique de la Ve République. Paris, La Découverte, 2010.

[7] ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, p. 5-34, 1988. Disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4251415/mod_resource/content/1/AbranchesSergio%281988%29_PresidencialismodeCoalizao.pdf

Trinta anos depois, o autor revisita seu texto e realiza um balanço da história republicana brasileira e suas crises. Cf. ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

[8] POWER, Timothy. O presidencialismo de coalizão na visão dos parlamentares brasileiros. In: O Congresso por ele mesmo: autopercepção da classe política brasileira. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2011.

[9] Desde a Constituição, houve apenas duas transmissões de mandatos para de candidato eleito diretamente para outro também com essas características: Fernando Henrique Cardoso passou a faixa para Lula (em 2003), e ele para Dilma (em 2011). Collor sofreu impeachment em 1992, e Itamar assumiu em seguida. Dilma foi apeada do poder em 2016, sucedida por Temer, e este por Bolsonaro, em 2018.

[10] Entrevista concedida aos jornalistas Daniel Weterman e André Shoulders, do Estadão, sob o título "Congresso tem poder inédito sobre orçamento e impõe agenda de projetos". Matéria publicada em 20/06/2022. Disponível em https://www.estadao.com.br/politica/congresso-tem-poder-inedito-sobre-orcamento-e-impoe-agenda-de-projetos/