Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A rota de humilhação para acessar os programas sociais
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Elaine Licio*
Denise Direito**
Natália Massaco Koga***
Desde o fim do Auxílio Emergencial, em outubro de 2021, os noticiários têm mostrado a explosão da demanda por cadastramento. Concebido como porta de entrada para a proteção social, a busca pelo Cadastro Único se tornou sua antítese, palco de constrangimentos e humilhações. São inúmeros os relatos das filas intermináveis, onde as pessoas passam dias e noites na rua, expostas ao frio, calor e toda sorte de inseguranças. Como ilustrou a saga de Janaína, que, doente e sem conseguir trabalhar, ficou dias na fila do CRAS do Distrito Federal e, após mal súbito, morreu. O poder público não foi capaz de fazer o cadastro de Janaína, passo inicial para entrada em outra fila, a do Benefício de Prestação Continuada (BPC).
São muitas as filas para acessar os programas sociais, especialmente aqueles voltados para os pobres. A fila para cadastramento é uma fila física, que a pessoa enfrenta no município. Depois de cadastrada, há outras filas - estas virtuais - para acessar programas como Auxílio Brasil e BPC. A fila virtual também constrange e humilha. Trata-se de uma espécie de limbo de "invisibilidade". O Estado reconhece apenas em tese o direito do cidadão, e responde com algo como: "Devo, não nego, pago quando puder".
As filas virtuais possuem dinâmicas diferentes. A do Auxílio Brasil é discricionária, depende do quanto o governo federal está disposto a alocar naquele momento. Recentemente, incluiu-se mais de dois milhões de famílias, que há meses estavam habilitadas no Cadastro Único. Mas a persistência das filas para cadastramento indica que está se formando novo contingente de famílias sem o devido acesso ao programa. A fila virtual do BPC segue outra lógica. O Estado é obrigado a pagar o benefício para quem possui as condições estabelecidas em lei. Nesse caso, a fila é administrativa, fruto da demora do INSS em processar os requerimentos. Em maio de 2022 havia 500 mil requerimentos pendentes de análise por lá.
A pandemia da covid-19 demonstrou que o Cadastro Único não estava preparado para atender grandes calamidades. A complexidade do processo de cadastramento, que envolve entrevista presencial e preenchimento de longo questionário, dificultou a resposta na velocidade demandada. Assim, o Cadastro Único foi apenas parcialmente usado na concessão do Auxílio Emergencial em 2020 e 2021. Aqueles que já estavam cadastrados em março de 2020 foram os primeiros a receberem o Auxílio. Porém, no caso dos demais, foi necessário adotar um aplicativo via celular para viabilizar um contingente próximo a 38 milhões de pessoas, cerca de 56% das concessões.
Parte dos órfãos do Auxílio Emergencial, que se extinguiu em outubro de 2021, compõe agora a fila para entrar no Cadastro Único. Isso era previsível considerando as dificuldades da retomada econômica no pós-pandemia e o grande contingente de pessoas que não recuperaram suas ocupações.
O gráfico abaixo mostra que houve queda importante na atualização dos cadastrados durante a pandemia, especialmente na vigência do Auxílio Emergencial. Ainda que a inclusão de novas famílias tenha mostrado crescimento constante ao longo do período, foi só em novembro de 2021, após o fim do Auxílio Emergencial e substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil, que se aceleraram as atividades cadastrais.
Gráfico - Atividades cadastrais e a remuneração repassada a estados e municípios
Fonte: Visdata. Ministério da Cidadania.
O Cadastro recebeu cerca de 8 milhões de famílias novas desde o início da pandemia. Sendo que o governo federal, além de não divulgar orientação prévia para essa inclusão, voltou a exigir, em 2022, atualização cadastral das famílias como requisito para entrar ou permanecer no Auxílio Brasil e BPC. Esse processo pressionou ainda mais as filas das equipes de atendimento já sobrecarregadas nos CRAS. O gráfico também mostra que o valor repassado aos estados e municípios para apoiar financeiramente as atividades cadastrais durante a pandemia ficou estanque, ensaiando inclusive uma tendência de queda nos repasses a partir de janeiro de 2022, período de maior expansão do Auxílio Brasil.
A experiência do Auxílio Emergencial deixou aprendizados gradualmente incorporados à gestão do Cadastro Único. Exemplo disso é o aplicativo, lançado em abril de 2022, que tornou possível ao cidadão fazer um pré-cadastro ou atualizar o cadastro já existente, caso não haja modificações da situação familiar.
Embora essa inovação busque aliviar as filas físicas, ela acabou por gerar uma nova fila virtual, desta vez, dos pré-cadastrados. Segundo o Ministério da Cidadania, atualmente, há 420 mil famílias pré-cadastradas, aguardando a oportunidade de ter seu cadastramento concluído pelos municípios em 240 dias. Ou seja, institucionaliza-se agora a fila virtual em que o cidadão pode demorar até 8 meses para ser cadastrado.
Na prática, quem quer se cadastrar hoje pode escolher entre amargar dias e noites na fila presencial, quando o município lhe dispuser essa opção, ou ficar no limbo virtual, esperando ser chamado para concluir o cadastramento. Se tudo der certo, em até oito meses conseguirá completar o seu cadastro e assim entrar em outra fila virtual, que lhe permita entrar na folha de pagamento dos programas, essa última sem prazo claro para se concretizar.
O Cadastro Único foi criado e desenvolveu-se ao longo das décadas para ser catalisador da inclusão social, para evidenciar as muitas dimensões da pobreza ao trazer informações não apenas sobre renda, mas também sobre educação, condições de saúde, domicílio, trabalho etc. Além de ser o único registro administrativo federal que mostra composição de famílias em termos de compartilhamento de renda e despesas. Nisso ele é hoje insubstituível.
O uso das novas tecnologias é mais do que bem-vindo para ampliar sua capacidade de atendimento. No entanto, é necessário revisar seu longo processo de coleta e validação dos dados, muitos dos quais já disponíveis em outras bases governamentais, prescindindo ser coletados novamente, caso do Censo Escolar. A interoperabilidade com os registros administrativos da previdência (CNIS) e do trabalho formal (RAIS) é importante para a adequada identificação da renda da pessoa, simplificando e dando maior confiabilidade ao cadastro. Também é necessária a consolidação de uma identidade digital forte, a exemplo das iniciativas gov.br já largamente utilizadas por inúmeras transações do governo e cidadãos.
A digitalização do Cadastro Único deve, acima de tudo, ocorrer em benefício do cidadão. Seja para a resolução do problema das filas ou para facilitar de algum modo o atendimento, a tecnologia não deve mediar todos os relacionamentos Estado - cidadão. Sempre haverá excluídos digitais ou aqueles que simplesmente preferem o contato pessoal, razão pela qual o investimento em tecnologia tem que vir acompanhado de investimentos nas estruturas municipais de cadastramento, principalmente em termos de recursos humanos.
A situação das filas e a discussão sobre a digitalização evidenciam parte das questões que precisarão ser superadas para que o Cadastro Único possa assumir papel central no combate à pobreza e às vulnerabilidades sociais. No entanto, é necessário também pensar na outra ponta, na articulação e coordenação de todas as políticas sociais usuárias do Cadastro Único, de forma a corrigir eventuais hiatos, superposições e ineficiências do sistema protetivo. Assim, fazer melhor, apesar dos limites fiscais.
*Elaine Licio é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Doutora em Política Social pela Universidade de Brasília.
**Denise Direito é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília.
***Natália Massaco Koga é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Doutora em Ciência Política pela University of Westminster.
****Esse texto é fruto de parceria entre a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) e a Coluna Diálogos Públicos.
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