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Diogo Schelp

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Fritura de Araújo revela momento de fragilidade de governo Bolsonaro

Com atuação contestada dentro do próprio governo, Ernesto Araújo está na berlinda  - Gustavo Magalhães/MRE
Com atuação contestada dentro do próprio governo, Ernesto Araújo está na berlinda Imagem: Gustavo Magalhães/MRE

Colunista do UOL

25/03/2021 15h54

O centrão, essa aglomeração informal de partidos fisiológicos no Congresso Nacional, fica valente quando vê um governante frágil. E os sinais de fragilidade do presidente Jair Bolsonaro captados em Brasília esta semana são abundantes.

Um dos mais evidentes é a fritura do chanceler Ernesto Araújo por parlamentares, incluindo o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e um grupo de senadores. Prova de que Araújo sentiu o calor é o fato de que ele foi à casa de Lira nesta quinta-feira (25) para dar explicações sobre a atuação do Itamaraty na pandemia.

O episódio é significativo porque, historicamente, no Brasil, o Poder Legislativo tem pouquíssima influência na condução ou na definição de rumos na política externa.

Algumas décadas atrás, nem mesmo os presidentes da República costumavam ter grande ingerência na diplomacia, sempre confiada ao Itamaraty. Isso mudou com os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que respectivamente inauguraram e intensificaram a chamada diplomacia presidencial.

FHC e Lula concentraram o poder de formulação da política externa na presidência, esvaziando o papel dos profissionais de carreira do Itamaraty. Mas os parlamentares continuaram, em grande parte, desprovidos de influência nessa área.

Por isso é tão extraordinário o fato de a cabeça de Araújo ter sido colocada a prêmio com tanta facilidade por parlamentares insatisfeitos com o prejuízo que a política externa ideológica de Bolsonaro está causando à capacidade de o Brasil combater a pandemia do novo coronavírus.

Evidentemente, há um forte componente doméstico nessa insatisfação. No ano passado, o Brasil deixou de se alinhar com a Índia na questão das patentes das vacinas contra covid-19, e agora depende da boa vontade do país do Sul da Ásia para obter insumos e doses adicionais para acelerar o processo de imunização.

A postura em relação à China foi ainda mais problemática. A ideologia antiglobalista promovida pela tríade da política externa bolsonarista — composta por Araújo, pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e pelo assessor presidencial Filipe Martins — consiste em atribuir à China e à burocracia internacional uma suposta conspiração para impor o comunismo aos povos do mundo.

Araújo, Bolsonaro e Martins dedicaram-se desde 2019 a fustigar os chineses com toda sorte de acusação e insultos. Muitas críticas ao governo chinês podem até ser justificadas, mas faltou pragmatismo a quem deveria cuidar para que o Brasil mantivesse uma boa relação com o seu principal parceiro comercial.

Resultado: no início do ano, o Brasil ficou à espera da liberação de insumos chineses para a produção de vacinas, o que acabou atrasando o processo de imunização.

O Itamaraty de Araújo também tem uma relação tensa com a União Europeia e luta para conquistar alguma confiança do novo governo americano de Joe Biden, depois de aferrar-se até o fim a uma aliança com o derrotado ex-presidente Donald Trump.

O Brasil candidatou-se a receber um lote de 10 milhões de doses de vacinas de Oxford/AstraZeneca que o governo americano tem sobrando em seus estoques. Parte dessas doses já foram prometidas ao México e ao Canadá. Sem uma boa relação com o governo Biden, fica difícil entrar na fila da doação.

Arthur Lira é um integrante do centrão, e como tal tem bom faro para governantes em apuro e bom tino para tirar o máximo proveito disso. A recusa de Bolsonaro em aceitar sua indicação (a cardiologista Ludhmilla Hajjar) para o Ministério da Saúde no lugar do general Eduardo Pazuello não poderia sair tão barata.

Ao longo desta semana, Bolsonaro já fez pronunciamento em cadeia nacional exaltando as vacinas (e contando um tanto de lorotas a esse respeito), criou um comitê liderado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para coordenar ações contra a covid-19, e encontrou-se com Lira para desfazer suspeitas de que este estaria disposto a tirar algum pedido de impeachment da gaveta.

Talvez Bolsonaro tenha que entregar a cabeça de Araújo para manter, por enquanto, a própria longe do alcance das mãos dos "aliados" do Congresso.