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Fabiana Moraes

Por que não moro mais aqui

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Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

14/08/2020 10h32

Há dois anos fui embora do Brasil. Eu, aquela que sempre olhou meio de lado quem deixava o país porque estava desiludido, cansado, porque tinha "deixado de acreditar". Me parecia uma atitude meio frouxa, na linha "classe média sofre". Ademais, também ato de quem podia bancar a possibilidade de viver lá fora, um quase luxo.

Mas eu fui, e a verdade é que até agora não consegui voltar. Deixei o Brasil de Clara Nunes, de Luiz Gonzaga, de Guimarães Rosa, de Conceição Evaristo, de Mateus Aleluia. Durante a viagem, lembrei o tempo todo de um dia, em 2014, em que cruzei a Chapada Diamantina, no Sertão da Bahia, trabalhando em uma reportagem.

A terra era muito vermelha, a tarde estava indo embora e acontecia aquela briga nordestina de laranja, azul, violeta e rosa no céu. Era bonito demais. Para coroar, tocava Gilberto Gil no carro. Tive uns arroubos de ufanismo e deslumbre e só conseguia olhar aquilo e pensar: o Brasil é foda. O Brasil é foda. O Brasil é foda.

Quatro anos depois dessa viagem, fui embora. Estava assustada demais para permanecer: meu filho, que é jovem e que é preto, já sofrera uma série de abordagens da polícia na rua — e vocês sabem como a polícia, no geral, aborda um jovem preto. Eu convivia com esse medo que te faz respirar curto e ao mesmo tempo criar uma espécie de pessoa paralela, sempre alerta, enquanto a outra, "normal", toca as coisas da vida.

Esse sentimento foi piorando. Em meados de 2018, uma amiga pernambucana que mora em São Paulo me falou sobre uma senhora que a viu, no ônibus, usando um broche com a logomarca de um partido de esquerda. "Tire isso, minha filha, é melhor para a sua segurança", recomendou. Conversamos a respeito e um certo alívio me ocorreu: apesar dos pesares, esse tipo de constrangimento não era uma realidade no Recife. Mas isso não durou muito tempo.

Chegou outubro e com ele uma espécie de ensaio dos novos e estranhos protocolos que precisaríamos adotar: melhor evitar usar vermelho, melhor evocar somente a Deus, melhor não comentar em qualquer lugar sobre política — e por política entenda educação, emprego, raça, gênero, alimentação, a vida. A minha pessoa "paralela" e sempre alerta ia se tornando maior que a pessoa "normal".

De volta à fila

O Brasil, ficando mais distante. Aí no primeiro turno mataram um artista preto a facadas em Salvador; aí cortaram com um pedaço de ferro os braços e o rosto de uma colega jornalista que cobria as eleições presidenciais; aí espancaram em um bar, também no dia do primeiro turno e no Recife, uma garota que usava roxo, cor associada aos movimentos feministas.

Entendi que eu estava de novo na fila da qual briguei um bocado para sair: a dos com menor proteção. Fui para o fim da linha, e na minha frente estavam trabalhadoras domésticas, indígenas, ambulantes, população transexual, população carcerária.

O temor que eu (vinda de um contexto de pobreza no qual faltou casa para morar) sentia novamente não deixou nunca de ser realidade para quem estava naquela fila, diante de mim. Eu conhecia algumas daquelas pessoas:

Claudia Silva Ferreira, 38 anos, assassinada pela PM carioca em 16 de março de 2014.

Vitor Pinto, do povo Kaingang, dois anos, assassinado em 30 de dezembro de 2014.

Luana Barbosa, 34 anos, assassinada pela PM paulista em 13 de abril de 2016.

Dandara dos Santos, 42 anos, assassinada em 15 de fevereiro de 2017.

Marielle Franco, 38 anos, assassinada pela milícia carioca em 14 de março de 2018.

E veio o vírus

Existem quilômetros de textos e análises tentando entender o que diabos aconteceu conosco, a nação mestiça-feliz-sacolejante que, ao se aproximar do espelho, descobriu uma pele horrorosa, autoritária, racista, violenta e mesquinha. Muita gente acha que o atual presidente brasileiro, um senhor fã de tortura que nos momentos de lazer gosta de espantar emas, seja o cavaleiro apocalíptico representante da péssima cútis nacional.

Mas enquanto falávamos sobre ele, sua "escalada autoritária" e fazíamos uma espécie de concurso de notas de repúdio, tivemos que correr às pressas para adotar novos protocolos. Não eram sobre que cores deveríamos usar para não apanhar nas ruas. Vieram o vírus e as máscaras, o álcool 70%, a cloroquina, a ansiedade, a fome, o desemprego. Veio em março um comediante vestido de presidente do Brasil e, prestem atenção, ele continua lá, em Brasília, espantando emas e deixando de liberar dinheiro para combater um vírus que matou, até agora, mais de 100 mil de nós.

O Brasil que eu observo de longe se parece cada vez mais com aquele que conheci na infância, nos anos 80: os meninos disputando para lavar um para-brisa nos sinais de trânsito, as pequenas procissões de pessoas nas ruas à noite se preparando para dormir sob as marquises, as famílias nas portas dos supermercados segurando placas nas quais lemos "estou com fome".

É verdade que há algumas diferenças: as ruas agora são mais coloridas pelas mochilas laranjas, verdes e vermelhas dos entregadores de comida, nos entretemos brincando de TikTok, usamos aplicativos de ótimo design para contabilizar nossos milhares de mortos pelo vírus.

Assistindo às pessoas "que deram certo"

Se o velho normal era o horror, o que dizer do novo?

Eu concordo com minhas amigas e meus amigos que o presidente cuja pulsão erótica se dá por armas e cloroquina (ao menos alguém está se divertindo) seja personagem central na mais triste fotografia que esse país já apresentou. Mas, como as pessoas na fila de antigos e novos desamparados já mostravam, ele não explica sozinho a desidratação brutal de nossa beleza e da nossa humanidade — no futuro, seremos também conhecidos como um povo que realizou buzinaços em frente a hospitais repletos de pessoas lutando para sobreviver.

Todo mundo que está, vivo ou morto, na fila, sabe o que é ser arrancado de um país e que deixá-lo é bem mais que pegar um avião para longe, é uma imposição. É não ter o passe para aquela nação ideal que te ofertam nos sites e na TV. É nunca ter tido acesso pleno a essa democracia que agora tantos afirmam estar sob ameaça. É servir como espectador, durante toda a vida, das pessoas "que deram certo". É nunca estar na foto que mostra "pessoas de bem". Para Claudia, Vitor, Luana, Dandara, Marielle e os mais de 100 mil mortos pela covid-19, deixar esta terra foi na verdade misturar-se a ela.

Eu estou fora do Brasil enquanto ele me circula, desidratado. Estou longe do país enquanto moro na capital de Pernambuco e o médico de máscara que me atende pergunta se vou querer recibo pelo pagamento da consulta. Caso sim, o serviço sairá mais caro. Ele vestiu verde e amarelo e foi às ruas contra a corrupção.

Estou fora do Brasil e temo estar, como tanta gente, sofrendo de banzo dentro da própria pátria. Tentei voltar diversas vezes: vendo os meninos e as meninas dançando passinho e vogue, dando risada com nossos memes geniais, vendo uma live de Tom Zé. Namorando, mesmo exilada, um país que sei ainda prenhe de humanidade, de beleza e de resistência.

Só que não consigo ultrapassar a fronteira. Nesse momento, o alerta é terrível: não sei se eu fui embora do Brasil — ou se o Brasil foi embora de mim.