Topo

Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sergio Moro e o retrato atualizado do Brasil

Sergio Moro discursa ao oficializar sua filiação ao Podemos em cerimônia em Brasília - Dida Sampaio/Estadão Conteúdo
Sergio Moro discursa ao oficializar sua filiação ao Podemos em cerimônia em Brasília Imagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

14/11/2021 13h35

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Paulo Prado, em seu Retrato do Brasil, de 1928, escreveu que "os homens, de incapazes, tornaram-se desonestos e, pela cumplicidade dos apaniguamentos eleitorais, aceitaram com pequena relutância o consórcio [no sentido de associação] das funções administrativas com os interesses mercantis". "A fragilidade humana fez o resto, que é a vergonha da nação. Na desordem da incompetência, do peculato, da tirania, da cobiça, perderam-se as normas mais comezinhas na direção dos negócios públicos."

Para o ensaísta, "o Brasil, de fato, não progride: vive e cresce, como cresce e vive uma criança doente, no lento desenvolvimento de um corpo mal organizado". Ele se referia à permanência dos vícios, das mazelas e da precariedade da formação social do país, assolado pelo fardo histórico do "sono colonial", mesmo após sua independência. "Sobre este corpo anêmico, atrofiado, balofo, tripudiam os políticos", observou.

Sobrinho de Eduardo Prado, Paulo apontou o "profundo indiferentismo" do nosso povo, "feito de preguiça física, de faquirismo, de submissão resignada diante da fatalidade das cousas". "Explorações esporádicas de reação e entusiasmo apenas servem para acentuar a apatia cotidiana", sentenciou. "É o grande rebanho que passa, pastando, de que falava Nietzsche. De vez em quando surge uma individualidade, ou nascente ou já sacrificada pela incomensurável maioria: os nomes dessas exceções, de raros, acodem logo ao bico da pena, mas, de fato e desde muito, estão desaparecendo rapidamente os que possuíam, na expressão dos historiadores românticos, 'o magnetismo da personalidade'."

Sergio Moro, na cerimônia de sua filiação ao Podemos, retratou esse mesmo Brasil 93 anos depois, onde "criminosos poderosos estão escapando impunes de seus crimes", "como se a Petrobras não tivesse sido saqueada" em meio ao consórcio das funções administrativas com os interesses mercantis. "Quando vai chegar o futuro do país do futuro?", questionou o ex-juiz, aludindo à célebre frase do autor austríaco Stefan Zweig, que fugiu do nazismo e se refugiou em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro.

"Mesmo quando se quer uma coisa boa, como esse aumento do Auxílio-Brasil ou do Bolsa-Família, que são importantes para combater a pobreza, vem alguma coisa ruim junto, como o calote de dívidas, o furo no teto de gastos e o aumento de recursos para outras coisas que não são prioridades", lamentou Moro, referindo-se à PEC (do Calote) dos Precatórios, aprovada em segundo turno pela Câmara na véspera, para liberar recursos, também, para o fundão eleitoral e as emendas de relator. Essas emendas foram suspensas por uma liminar da ministra Rosa Weber, mantida em plenário virtual do STF por 8 votos a 2 (de Gilmar Mendes e Kassio Nunes Marques, claro) até análise do mérito; mas Arthur Lira já articula seu remanejamento dentro do Orçamento, com uma ou outra concessão em transparência para garantir a complacência do Supremo.

"E aí o governo gasta mais do que pode e lá vem mais inflação e mais juros. E assim o país não cresce e não se vê emprego", relacionou Moro, sempre sugerindo que a velha política tripudia sobre o Estado balofo e o povo anêmico. "E, com tudo isso, as pessoas passam a acreditar que não há governo, que não há futuro, que estamos sozinhos e que tudo é inútil", observou o ex-juiz, mostrando como o Brasil não progride e os brasileiros acabam recaindo na submissão resignada diante da fatalidade das cousas.

"Todo mundo também sabe que quem desvia dinheiro público tem que ser punido e não premiado. Todo mundo sabe que o dinheiro desviado é o hospital e a escola sucateadas. O problema é que não conseguimos fazer o que sabemos que precisamos fazer, porque as estruturas do poder foram capturadas. Elas passaram a servir a si mesmas e já não servem ao povo", apontou Moro, descrevendo a direção contemporânea dos negócios públicos, com a desordem da incompetência, do peculato, da tirania, da cobiça.

"Parte disso é corrupção, como a que vimos e nos assustou na Lava Jato. Mas outra parte é a degeneração maior da vida política: a busca do interesse público foi substituída pela busca egoísta dos interesses próprios e dos interesses pessoais e partidários. É a máquina pública voltada para si mesma. Isso explica por que o Brasil continua sem futuro, com o povo brasileiro sem justiça, sem emprego e sem comida."

A despeito das celeumas acadêmicas sobre a precisão das causas históricas, os males nacionais descritos por Paulo Prado (como o atraso econômico, o desperdício, a corrupção, o egoísmo de elites empresariais e políticas, consolidado em apaniguamentos eleitorais) continuam intactos no Brasil atual, retratado por Moro sem a "infecção romântica" que o ensaísta criticava também nos discursos políticos; ou seja, de modo simples e direto, sem "o divórcio entre a realidade e o artifício". (Tanto que o ex-juiz arrematou: "Chega de mensalão, chega de petrolão, chega de rachadinha. Chega de orçamento secreto. Chega de querer levar vantagem em tudo e enganar a população.")

Como soluções, porém, Prado pregava a necessidade de guerra ou revolução, alegando que "para tão grandes males parecem esgotadas as medicações da terapêutica corrente: é necessário recorrer à cirurgia." Já Moro, colocando-se à disposição do partido para a candidatura à presidência da República, apresentou "um projeto de reconstrução de todos os sonhos perdidos". "Não é só um projeto para reconstruir o combate à corrupção. Isso faz parte dele, mas ele vai muito além." E falou de suas ideias para economia, educação, saúde, segurança pública, meio ambiente e outras áreas, pregando a paz entre os brasileiros. "Nossas únicas armas serão a verdade, a ciência e a justiça."

Até meados de 2022, o eleitorado deverá apontar, por meio das pesquisas eleitorais, quem é o candidato mais forte da via alternativa ao populismo de Lula e Jair Bolsonaro para se manter no páreo e usar o magnetismo de sua personalidade para tirar do segundo turno ao menos um deles, sendo o atual presidente, no momento, o mais suscetível à ultrapassagem. Mas o retrato atualizado do Brasil, em contraste com as realidades paralelas do lulismo e do bolsonarismo, já está feito. Só o "profundo indiferentismo" pode levar o povo a compactuar com a volta ou a permanência das vergonhas da nação.