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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Brasil injusto: Solto pelo STF, traficante aterroriza São Gonçalo

Colunista do UOL

02/11/2021 13h58Atualizada em 05/11/2021 19h34

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1. Alertei em 22 de novembro de 2019, no artigo "A frente ampla pela impunidade":

"Qualquer crime cometido em liberdade por criminosos condenados em segunda instância terá tido, indiretamente, a cumplicidade moral dos seis ministros do STF que votaram contra a prisão neste momento do processo: Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, Celso de Mello e Marco Aurélio Mello, o homem que mandou soltar o traficante do Rio de Janeiro."

O traficante era Antônio Ilário Ferreira, o Rabicó, chefe do tráfico no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, condenado a um total de 27 anos e três meses de prisão.

Marco Aurélio havia tomado em 30 de outubro a decisão de soltá-lo, defendendo a liberdade até o trânsito em julgado do título condenatório e alegando que havia grande possibilidade de alteração da jurisprudência da Corte neste sentido. A mudança ocorreu logo depois, em 7 de novembro, quando o STF agiu para soltar Lula, derrubando a prisão após condenação em segunda instância, outrora defendida por Toffoli e Gilmar. (O petista José Dirceu e o velho tucano Eduardo Azeredo foram soltos no dia 8.)

Preso em 2008, quando estava foragido em Mamanguape, cidade da Paraíba onde comprou casa e morava com sua família como empresário do setor de reciclagem, Rabicó cumpria pena em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, em unidade prisional de segurança máxima, da qual saiu em 14 de novembro de 2019.

marco aurélio  - Reprodução/STF - Reprodução/STF
20.ago.2020 - O ministro do STF Marco Aurélio Mello participa de sessão virtual da Corte durante a pandemia da covid
Imagem: Reprodução/STF

Em 17 de dezembro, a Primeira Turma do STF determinou, por 4 votos a 1, a volta do traficante à prisão. Os ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux votaram contra a liminar de Marco Aurélio, não em razão de Rabicó estar condenado em segunda instância e o relator do caso no STJ ter considerado adequado o início da execução provisória da sanção após o exaurimento das instâncias ordinárias, mas porque "havia contra o réu prisão preventiva decretada em primeira instância" e mantida em decisão anterior da mesma Turma do Supremo "para garantia de ordem pública", como apontou Moraes, considerando o risco de reiteração delitiva por parte do traficante. Isto "porque, além da pena de 10 anos" no processo em análise, Rabicó "tem três condenações anteriores transitadas em julgado e dois outros processos, por ser integrante da cúpula do Comando Vermelho do Rio de Janeiro".

Mas a determinação veio tarde.

Como Marco Aurélio ignorou a validade da prisão preventiva, focando sua decisão em contrariar a então jurisprudência e derrubar a execução da pena antes do exaurimento dos recursos nos tribunais superiores, Rabicó já estava livre depois de 11 anos de cadeia e preferiu ficar foragido, exercendo o velho poder na região metropolitana do Rio, onde, aparentemente, sua avidez por extorquir trabalhadores incomoda até seus pares.

Informa o jornal O Dia:

"De acordo com a polícia, uma série de medidas do traficante após a sua soltura já vinham desagradando algumas lideranças do Comando Vermelho (CV), como Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, que cumpre pena na penitenciária federal de Catanduvas, no Paraná. Uma delas seria a cobrança de uma taxa de comerciantes do conjunto de favelas, algo reprimido por Marcinho VP e companhia.

Ainda conforme a polícia, líderes do CV se reuniram no Complexo do Salgueiro, onde teria sido decidido um corte de regalias de Rabicó. O criminoso é conhecido pela alta periculosidade e desejo pelo poder dentro da facção.

O Complexo do Salgueiro é conhecido por ser considerado como um dos principais refúgios de traficantes do Comando Vermelho e tem um dos mais altos índices de assaltos do estado.

Além da venda de drogas, o tráfico vem lucrando com exploração de serviços de TV a cabo e internet clandestinos, venda de gás e roubos de carga."

Em 28 de outubro, o policial militar Deivison Barros da Silva, de 32 anos, e o morador Maurício da Silva Gomes, de 55, foram baleados durante ação realizada na região pelo Comando de Operações Especiais da Polícia Militar para encontrar traficantes, fazer apreensão de armas e remover barricadas. O COE engloba o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), o Batalhão de Polícia de Choque (BPChq), o Grupamento Aeromóvel (GAM) e o Batalhão de Ações com Cães (BAC). Mas ninguém foi preso.

Informa o portal O São Gonçalo:

"Desde o início do ano, a guerra travada entre forças de segurança e criminosos já deixou diversos inocentes feridos e mortos, entre civis e militares.

Segundo os dados da plataforma Fogo Cruzado, o Complexo do Salgueiro registrou, entre janeiro e setembro de 2021, um total de 42 tiroteios. Ou seja, a cada seis dias, pelo menos um confronto armado aconteceu na região. Além disso, foram 28 ações da Polícia Militar, 29 mortos e 20 feridos, entre eles um policial militar. Os dados até setembro deste ano já são superiores aos registrados em todo o ano de 2020, quando a plataforma apontou 43 tiroteios, 15 mortos, 13 feridos, entre eles um militar, e 19 ações da polícia."

O hoje aposentado Marco Aurélio, que foi indicado ao Supremo pelo primo Fernando Collor de Mello e se tornou decisivo na soltura de Lula e Rabicó (sem falar na do traficante André do Rap, também foragido), poderia deixar suas mordomias de lado, passar uma temporada em São Gonçalo disfarçado de cidadão comum, abrir uma lojinha no Complexo do Salgueiro e usar os serviços locais de TV a cabo, internet e gás.

Talvez seja o caso de autoridades começarem a se expor aos efeitos de suas ações e omissões, ou barbeiragens, como faz diariamente o povo roubado, extorquido e enlutado.

2. No artigo de 2019, registrei que a CCJ da Câmara havia aprovado a PEC da prisão em segunda instância, que o então ministro Sergio Moro era o único do governo a atuar pela sua aprovação e que "a pressão popular será imprescindível para que a PEC avance também na comissão especial, no plenário e no Senado", pois lulistas, bolsonaristas, velhos tucanos e Centrão estavam unidos para arrefecer a iniciativa - o que acabaram conseguindo, claro.

A frente ampla pela impunidade não somente impediu o restabelecimento da medida derrubada no STF, como também avançou no desmantelamento do combate à bandidagem, desfigurando o pacote anticrime de Moro, fragilizando a fiscalização das contas dos partidos, alterando a Lei de Improbidade e tentando destruir a independência do Ministério Público, além de turbinar fundos, emendas e demais privilégios políticos.

"Interesses corporativos unem PT e bolsonaristas no Congresso", informou o Estadão em 30 de outubro, resumindo o bolsopetismo descrito em meus artigos e comentários há mais de dois anos. A mobilização contra o agora pré-candidato Moro, que deixou o governo quando Jair Bolsonaro interferiu na Polícia Federal para blindar "minha família ou amigo meu", também os une. Lula e Bolsonaro querem derrotar no primeiro turno de 2022 o ex-juiz e ex-ministro, defensor de "um Brasil justo para todos" - seu novo slogan de campanha, previsto nesta coluna.

Por um Brasil justo, o ex-presidiário Lula poderia deixar suas mansões, jatinhos e verbas do fundo partidário de lado e passar uma temporada disfarçado de cidadão comum em Itaboraí, a vizinha de São Gonçalo arruinada pelo superfaturamento das obras do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) no petrolão, o maior esquema de corrupção da história do país, ocorrido durante os governos do PT.

Por um Brasil justo, o potencial presidiário Bolsonaro poderia deixar suas mansões, aviões da FAB e cartões corporativos de lado e, ao menos, responder sem pitis sobre evidentes desvios de dinheiro público em gabinetes bolsonaristas, além de visitar famílias devastadas pelo vírus do qual se fez aliado e acossadas pelos preços de combustíveis e alimentos, turbinados pela desvalorização do real frente ao dólar.

Até segunda ordem, no entanto, só quem pode cortar regalias de Lula e Bolsonaro, ou evitar maiores abusos, é o eleitorado. Só ele, também, pode escolher um presidente capaz de indicar ao STF ministros melhores.