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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A surdez voluntária de Bolsonaro

Colunista do UOL

08/01/2022 14h17

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Em 2 de abril de 1960, o jornalista e ensaísta austríaco naturalizado brasileiro Otto Maria Carpeaux escreveu no artigo "Shakespeare como mito", publicado no Estadão:

"Realmente, o saber acumulado nessas peças é imenso: Shakespeare entende de história e de direito, de medicina e teologia, de botânica e de mil outras coisas. Mas no meio de tudo isso encontramos anacronismos graves e evidentes sinais de ignorância de outras tantas coisas. Há uma diferença grande entre saber e erudição. O saber de Shakespeare parece acumulado pela observação e pela atenção do gênio que sabe assimilar tudo. A erudição de Shakespeare foi, porém, bem caracterizada pelas palavras de [seu contemporâneo, o também ator, dramaturgo e poeta inglês] Ben Jonson no elogiadíssimo poema que mandou estampar na primeira edição das Obras do amigo: 'small Latine and less Greek', quer dizer, Shakespeare sabia pouco justamente daquilo que os aristocratas daquele tempo estudavam nas universidades."

A expressão teria sido usada para indicar que Shakespeare não tinha conhecimento das duas línguas fundamentais da cultura ocidental, ao contrário de Johnson. Ainda assim, há controvérsias sobre a interpretação do poema, que poderia ser entendido de outro modo: mesmo que Shakespeare conhecesse pouco latim e menos grego (o que, neste caso, não seria verdade), os grandes dramaturgos clássicos o elogiariam.

"Mas por que se insiste tanto na suposta necessidade de um saber enciclopédico para escrever aquelas obras dramáticas?", questionou Carpeaux, citando "graves censuras dos classicistas do século XVIII contra Shakespeare, ao qual negavam a grandeza poética porque não teria sido bastante erudito". "Certamente, não pedimos ignorância aos poetas. Mas erudição, embora possa deixar de prejudicar, pouco adianta."

Mário de Andrade, assim como Carpeaux, sabia distinguir saber e erudição, reconhecendo os respectivos valores e medidas. Em 1929, o escritor paulista fez uma anotação em seu diário de viagens, depois reproduzida em coluna do Diário Nacional:

"Tenho aliás achado muita graça na reação patrioteira que o livro do Paulo Prado causou. O Retrato do Brasil está sendo lido e relido por todos. E comentado. Comentado pra atacar. (...) Acham que o livro é ruim, o Brasil não é aquilo só, a sensualidade não entristece ninguém, o brasileiro não é triste, mas, com palavras diferentes, o que todos acham mesmo é que 'o Brasil vai mal'. Ora, no fundo o espírito do Retrato do Brasil é isso mesmo. Paulo Prado é uma inteligência fazendeira prática. Fazendeiro sai na porta de casa, olha o céu, pensa: vai chover.

Chama o administrador e fala:

- Vai chover. Ponha os oleados no café.

Pouco importa que o céu esteja puro, fazendeiro sentiu que ia chover. Pouco importa que chova ou não (e no geral chove mesmo), o importante é que se chover o café esteja coberto.

Foi o que Paulo Prado fez. A moral do Retrato do Brasil é bem unicamente esta:

- Vai chover.

Sucedeu, porém, que se tratava de escrever um livro, tinha que haver considerações. Paulo Prado fez as considerações. São considerações de fazendeiro. (...) O importante era sentir, afirmar e prevenir."

Andrade ainda chamou de "ridícula" a reação à obra.

Quarenta anos depois, em 1969, no volume VI do livro A literatura brasileira, o crítico literário Wilson Martins também valorizou a perspicácia do autor, a despeito de seu desprezo por exigências acadêmicas: que Paulo Prado desprezasse "os documentos burocráticos e os fatos miúdos, os apelidos dos governadores e dos bispos, a 'escrupulosa acumulação de citações e autos que nada provam', apenas demonstra que o impressionismo historiográfico e ensaístico, se é, com certeza, menos descritivo e preciso, será, sem dúvida, mais fiel aos contornos da fugitiva e movediça realidade, mais agudo e mais completo na captação dos imponderáveis que constituem o verdadeiro caráter das nações e dos homens. A verdade é que todo o ensaísmo sociológico ou de história social resulta da obra de Paulo Prado".

Em A arte de escrever, tradução de ensaios reunidos originalmente em 1851, Arthur Schopenhauer já explicava que "a relação existente entre um pensador de força própria e o típico filósofo livresco é semelhante à relação de uma testemunha direta com um historiador: o primeiro fala a partir de sua concepção própria e imediata das coisas". Para o pensador alemão, "é um elogio quando se chama um autor de ingênuo, porque significa que ele pode se mostrar como realmente é. Em geral, a ingenuidade atrai, enquanto a artificialidade causa repulsa". Segundo Schopenhauer, "a simplicidade sempre foi uma marca não só da verdade, mas também do gênio". Ele ironizava o caso de "muitos eruditos", "sabichões", que "leram até ficarem burros".

Em 1920, o neotomista francês Antonin Sertillanges ensinava que "a vida intelectual" (nome de seu livro, também citado no meu artigo "A reforma moral") "necessita do alimento dos fatos". "Encontram-se fatos nos livros, mas todo mundo sabe que uma ciência puramente livresca é frágil; ela padece do defeito do abstrato; ela perde o contato (...). Quantas experiências a vida nos propõe a cada dia! Nós as deixamos passar, mas um pensador profundo as recolhe e com elas compõe seu tesouro; seus quadros espirituais serão pouco a pouco preenchidos com elas, e suas ideias gerais (...), ilustradas por uma documentação viva." Para Sertillanges, "deixar-se amarrar em fórmulas limitadas e permitir que o espírito se petrifique em estruturas livrescas é uma marca de inferioridade que contradiz claramente a vocação intelectual."

Um certo desprezo por tecnicismos, maneirismos e demais afetações de erudição, em detrimento do poder da cognição e do talento de lançar luz diretamente sobre a realidade em torno, é expressado, também, na obra de romancistas variados, como o alemão Goethe, o brasileiro Lima Barreto e o americano Henry Miller. "O príncipe tem gosto pelas artes e evoluiria se sua mente não estivesse acorrentada por regras frias e meras ideias técnicas", diz, por exemplo, o protagonista de Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. "Muitas vezes perco a paciência, quando, com uma imaginação fulgurante, estou dando expressão à arte e à natureza, e ele interfere com sugestões eruditas e usa aleatoriamente a fraseologia técnica dos artistas."

Eu, Felipe, além dos romances de grandes pensadores, aprecio a sabedoria de Shakespeare; a "inteligência fazendeira" de Paulo Prado; a capacidade de Carpeaux, Andrade e Martins de colocar a expressão do saber acima das tecnicalidades; e as lições de Schopenhauer e Sertillanges sobre a libertação interior e o aprimoramento da consciência individual. Todos eles me ajudam a suportar, como vacinas literárias, o drama jornalístico, intelectual e espiritual, que é falar de Jair Bolsonaro.

"O que está por trás disso? Qual é o interesse da Anvisa por trás disso aí? Qual o interesse daquelas pessoas taradas por vacina? É pela sua vida? É pela sua saúde?", perguntou o presidente, exemplificando o que expliquei, desde as origens, no artigo "Os mercenários da dúvida sobre a vacinação". Os tarados por vacina, inclusive para crianças, estão interessados, obviamente, em sobreviver e salvar vidas, como sabe qualquer um que não leu propaganda bolsonarista no zap até ficar burro. Mas, como escreveu o pensador grego Plutarco (45-120), "é delicado e difícil para a filosofia empreender a cura da tagarelice. Pois seu remédio, a palavra, é feito para aqueles que ouvem, e os tagarelas não ouvem ninguém, já que estão sempre falando. Eis o primeiro mal contido na incapacidade de se calar: a incapacidade de ouvir."

Bolsonaro queria ser o Shakespeare da Barra da Tijuca contra os classicistas do século XXI. O Paulo Prado do Planalto contra os patrioteiros da Anvisa. O jovem Werther do Açaí contra os príncipes da OMS. Mas o presidente é só Dom Bolsonaro del Centrão, o tagarela que tenta impor a segunda realidade à primeira, desprezando não apenas regras frias, mas, também, a inteligência alheia e vidas humanas de todas as idades.

Enquanto a vacina carcerária não chega, o Brasil vai mal, muito mal com ele.