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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Monark, nazismo e reforma psicológica

Colunista do UOL

09/02/2022 19h16

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Escrevi sobre a banalização do estrelato em 7 de junho de 2019, quase três anos antes de Monark defender no popular Flow Podcast o reconhecimento legal a um partido nazista no Brasil e o direito individual de ser antijudeu, ainda que ele alegue não ser.

"O aumento do número e do alcance dessas plataformas reais e virtuais de exposição pessoal multiplicou e banalizou o estrelato, turbinando o narcisismo do 'jovem eterno', habitante de um universo particular conhecido como 'bolha'. O espaço público foi virando Neverland", dizia meu artigo, intitulado "Reforma psicológica já".

Nele, citei um livro de 1937 da psicanalista alemã Karen Hornay e uma crônica de 1973 do escritor brasileiro Paulo Mendes Campos para refletir sobre a neurose narcisista no século 21, com o avanço das redes sociais. "A insistência de que o mundo devia adaptar-se à 'estrela' (ou à 'bolha') ultrapassa todas as barreiras, incluindo a do ridículo", afirmei no texto, alertando que inteligência, saber e virtudes morais não devem ser confundidos com a visibilidade decorrente de características ou habilidades específicas - confusão que leva à "arrogância estúpida" e à falta "de respeito ao outro".

Em 5 de agosto de 2021, o músico Rogério Skylab, agora com 65 anos, alertou Monark, de 31, sobre os efeitos do que ele falava, depois de ouvir do entrevistador que o Flow era uma conversa de botequim: "Mas não é um botequim, porque tem uma multidão vendo lá fora, cara. Isso aqui, querendo ou não, você sendo formado ou não, é um programa jornalístico, porra!". Assim como o tio do Homem-Aranha (ou a tia, na atual versão cinematográfica) diz que "com grandes poderes vêm grandes responsabilidades", Skylab sentenciou, após ser questionado por Monark se ele e seu parceiro de podcast não poderiam ser apenas "dois moleques idiotas": "Tudo o que se fala aqui tem uma responsabilidade."

O ativismo crescente do entrevistador em defesa de uma liberdade de expressão absoluta, porém, era não apenas o oposto do comportamento despretensioso de um autoproclamado idiota, mas uma bomba-relógio prestes a explodir ante qualquer assunto mais sensível que a prisão de ativistas bolsonaristas em razão de ameaças de morte e crimes contra a honra de autoridades. O genocídio do povo judeu pelos nazistas, claro, foi uma delinquência muito pior. "As câmaras de gás, com seus crematórios anexos, tinham a capacidade de matar vários milhares de pessoas de uma vez", descreve Ann Heberlein na biografia de Hannah Arendt citada no primeiro artigo desta coluna.

"Os prisioneiros eram levados para um vestiário sob pretexto de que tomariam banho e passariam por uma desinfecção. Eles se despiam e passavam para um espaço que parecia uma sala de chuveiros coletivos, mas que de fato era uma câmara em que um gás letal, o Zyklon B, originalmente destinado ao despiolhamento, era despejado pelo teto. Dentro da câmara de gás disfarçada de banheiro coletivo, as pessoas morriam por sufocamento. Depois, os mortos eram arrastados por prisioneiros ainda vivos até um elevador que os transportava para o crematório no térreo", detalha a escritora sueca.

O processo de desumanização iniciado em 1933 com a legislação antijudaica, a propaganda antijudaica e a discriminação de judeus culminou nos campos de extermínio, porque "os judeus não eram mais considerados seres humanos com dignidade e direitos, e sim um problema a ser resolvido, mais ou menos como ervas daninhas numa horta", explica Heberlein. "Deveriam simplesmente ser exterminados."

Por terem visto a "indústria de cadáveres" (como chamava Arendt) resultante do nazismo, é que os alemães baniram em 1949 o uso de símbolos, linguagem e propaganda nazistas, e criminalizaram nos anos 1960 a incitação de ódio e violência contra parcelas da população. Depois, atualizaram a lei para criminalizar o racismo.

"O que eu defendo, e acredito que o Monark também defenda, é que por mais absurdo, idiota, antidemocrático, bizarro, tosco o que o sujeito defenda, isso não deve ser crime, porque a melhor maneira de você reprimir uma ideia antidemocrática, tosca, bizarra, discriminatória é você dando luz àquela ideia, pra que aquela ideia seja rechaçada socialmente", disse o deputado federal Kim Kataguiri no mesmo episódio em que o entrevistador afirmou, de modo mais grave, que "deveria existir um partido nazista legalizado no Brasil" e que "se o cara for anti-judeu ele tem direito de ser anti-judeu".

O erro moral de Monark foi defender que o Brasil institucionalize os meios de ação política que resultaram no extermínio de milhões de judeus na Alemanha. O erro intelectual e político de Kataguiri foi aplicar às ideias nazistas que repudia um raciocínio genérico de tolerância à divergência, em vez de defender a intolerância legal com o antissemitismo e a apologia de crimes bárbaros, historicamente já praticados.

"É um requisito de uma democracia em funcionamento que as pessoas tolerem ideias com as quais discordam. No entanto, alguns discursos, alguns grupos, alguns partidos podem ser tão prejudiciais que os políticos e o público concluem que os riscos que eles representam superam os benefícios de protegê-los", explicou corretamente Erik Bleich, professor da Faculdade Middlebury College, à BBC News Brasil. "Os alemães viram em primeira mão aonde o nazismo pode levar e por isso mesmo a Alemanha está entre os defensores mais ativos do que é chamado de 'democracia militante'; em outras palavras, a noção de que a democracia deve ser defendida, mesmo ao custo de restringir algumas liberdades quando essas liberdades estão sendo exploradas para minar a democracia." No caso específico, para minar o direito de parte do povo à própria vida.

Para quem vê o mundo como se fosse um grande podcast ou Parlamento, onde tudo se discute e se refuta, sem que as pregações tenham consequências práticas alheias à discussão e à refutação, convém lembrar, como escreveu Anne Applebaum em livro também já citado nesta coluna, que "Hitler e Stalin estiveram entre os primeiros líderes a entender quão poderosa essa nova mídia", o rádio, "podia ser". "Inicialmente, os governos democráticos tiveram dificuldade para encontrar maneiras de combater a linguagem dos demagogos, que agora chegava às pessoas no interior de suas casas."

Não havia, ainda, aparelhos radiofônicos - que dirá de TV - leves, portáteis ou embutidos em painéis de automóveis, nem celulares com fone e internet; mas a linguagem dos demagogos a serviço da propaganda hitlerista e stalinista já era difícil de ser combatida, como é, hoje, a dos teóricos da conspiração a serviço de governos e líderes populistas. "A nova revolução das comunicações foi muito mais rápida que qualquer coisa que vimos no século XV ou mesmo XX", observou a autora. Se já dão bastante trabalho o negacionismo bolsonarista de uma emissora e o antilavajatismo histérico de outra, imagine uma rádio controlada por um partido nazista, inventando bodes expiatórios para as frustações sociais e econômicas dos brasileiros.

"Pode-se atirar na oposição com metralhadoras até eles reconhecerem a superioridade dos artilheiros", disse Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, em 1933. "Este é o método mais simples. Mas pode-se também transformar a nação por meio de uma revolução mental, vencendo dessa forma os opositores sem aniquilá-los. Nós, nacional-socialistas, adotamos o segundo método e pretendemos continuar a empregá-lo." E eles continuaram, até ficarem à vontade para aniquilar quem quisessem.

Embora seja impossível vedar todos os expedientes sutis usados por manipuladores para fins de "revolução mental", a defesa ostensiva da maior monstruosidade que o mundo testemunhou não pode ser institucionalizada. Embora seja impossível, também, vedar todos os preconceitos existentes na cabeça dos indivíduos, ninguém tem direito a ações e manifestações discriminatórias, ou contrárias à existência alheia.

Ao longo dos últimos meses, Monark ignorou a possibilidade de modificar-se e insistiu em adaptar o mundo à sua Terra do Nunca, até o mundo reagir com uma fuga de patrocinadores, o rompimento de sua sociedade no podcast e a abertura de investigações sobre declarações dadas no episódio. Apesar de tudo, torço para que ele ponha a cabeça no lugar e se recupere desse furacão, porque crescer dói, mas vale bem mais a pena que o estrelato virtual.

Ceder à realidade, repito, ainda é a mais urgente de todas as reformas.