Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O maniqueísmo raiz de Lula e Bolsonaro
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
1.
Santo Agostinho (354-430) se tornou o adversário mais forte e persistente da seita a que aderiu na juventude - o maniqueísmo, em sua versão original -, como apontei no item 4 do artigo "Por que Lula se equipara a Deus".
Dezesseis séculos depois, o combate continua.
"Se você pensa em política de uma maneira maniqueísta, as concessões são um pecado. Deus e o diabo não emitem muitas declarações bipartidárias, e você também não deveria", constata, com certo humor, o professor Jonathan Haidt, doutor em psicologia social pela Universidade da Pensilvânia, em seu livro A mente moralista - Por que pessoas boas são segregadas por política e religião.
"O profeta persa do século III, Mani, pregou que o mundo visível é o campo de batalha entre as forças da luz (bondade absoluta) e as forças das trevas (maldade absoluta)", resume o autor nova-iorquino. "A pregação de Mani evoluiu para o maniqueísmo, uma religião que se espalhou pelo Oriente Médio e influenciou o pensamento ocidental."
Para Haidt, "a classe política norte-americana se tornou muito mais maniqueísta desde o início dos anos 1990", como "resultado natural do realinhamento político" dos estados e partidos, "ocorrido depois que o presidente Lyndon Johnson assinou a Lei dos Direitos Civis em 1964". "Os estados direitistas do Sul, que eram solidamente democratas desde a Guerra Civil (porque Lincoln era republicano) começaram a deixar o Partido Democrata e, nos anos 1990, o Sul era solidamente republicano."
Contextualizo para os leitores brasileiros:
O republicano antiescravista Abraham Lincoln foi eleito em 1860, quase sem apoio no Sul, onde sete estados escravistas então declararam sua secessão e formaram os Estados Confederados da América. A guerra civil travada entre eles e os demais vinte e três estados, historicamente referidos como União e simplificados como o "Norte", começou em 1861, deixou cerca de 700 mil mortos e terminou em 1865. Em 14 de abril, Lincoln, que havia sido reeleito em 1864 durante os conflitos, foi baleado e morto por um simpatizante do Sul; em 26 de abril, as forças Confederadas se renderam; em 9 de maio, o presidente Andrew Johnson declarou oficialmente o fim da guerra; e em dezembro, o Congresso aprovou a 13ª Emenda à Constituição dos EUA, abolindo a escravidão.
Já Lyndon Johnson, do Partido Democrata, foi empossado presidente a bordo do Air Force One (o avião presidencial) duas horas e oito minutos depois do assassinato de John F. Kennedy, em 22 de novembro de 1963. Kennedy, visto como um esquerdista do Norte, havia escolhido como vice o rival que derrotara nas primárias, justamente para reduzir em 1960 a resistência dos eleitores do Sul, em especial do Texas, onde Johnson nascera e tinha apoio, ainda que líderes trabalhistas e sindicais não gostassem dele.
Tendo sido líder da minoria e da maioria democrata no Senado e tocado a agenda legislativa durante o governo do republicano Dwight D. Eisenhower, Johnson era mais experiente em articulações no Congresso, então mesmo havendo, em ambos os partidos, parlamentares não tão contrários à segregação racial no espaço público (ônibus, escolas, locais de trabalho, restaurantes, hospitais e até cemitérios), ele conseguiu levar ao plenário a proposta legislativa dos direitos civis, submetida por Kennedy em 1963. Ela passou na Câmara por 290 a 110 votos e no Senado por 71 a 29. Em 2 de julho de 1964, Johnson sancionou a lei que proibiu a discriminação, ao que teria dito, prevendo a ira de sulistas brancos até então fiéis ao seu partido: "Nós perdemos o Sul por uma geração." Apesar disso, ele venceu a eleição daquele ano, obtendo maioria em 44 dos 50 estados. Perdeu em Louisiana, Alabama, Mississippi, Geórgia, Carolina do Sul e Arizona.
Haidt não contextualiza essas figuras e questões no livro, como fiz nos parágrafos acima, porque o público dos EUA está mais familiarizado com a história do país.
"Antes desse realinhamento", prossegue, "havia esquerdistas e direitistas em ambos os partidos, o que facilitava a formação de equipes bipartidárias capazes de trabalhar juntas em projetos legislativos. Mas, após o realinhamento, não havia mais sobreposição, nem no Senado nem na Câmara dos Representantes dos EUA. Atualmente, o republicano mais à esquerda é tipicamente mais direitista que o democrata mais à direita. E uma vez que os dois partidos se tornaram ideologicamente puros - um partido esquerdista e um partido direitista -, o aumento do maniqueísmo era certo."
Como agravante do quadro, Haidt aponta a mudança ocorrida depois que os parlamentares passaram a deixar suas famílias nos estados de origem, em vez de levar seus cônjuges e filhos para Washington. "Antes de 1995, congressistas de ambos os partidos participavam de muitos dos mesmos eventos sociais nos finais de semana; seus cônjuges tornavam-se amigos; seus filhos jogavam nos mesmos times esportivos. Hoje em dia, porém, a maioria dos congressistas voa para Washington na segunda-feira à noite, se reúne com seus colegas por três dias e então voa para casa na quinta-feira à noite" - exatamente como acontece no Brasil, em alguns casos não sem uma farra profissional em Brasília no meio da semana. "Amizades entre partido estão desaparecendo; e o maniqueísmo e a política de terra arrasada estão aumentando."
Mas o problema, claro, não se limita aos políticos. "A tecnologia e a mudança dos padrões residenciais permitiram que cada um de nós se isolasse dentro de casulos de indivíduos com a mesma opinião", escreve Haidt. Como já vimos nesta coluna, o próprio mercado de ideias não é livre: algumas são turbinadas por algoritmos de mídia social que promovem conteúdo divisivo e por gastos pesados de governos, grupos e veículos que se beneficiam política e financeiramente de antagonismos partidários e ideológicos, com frequência fomentados com desinformação e histeria.
2.
Tudo isso agrava o maniqueísmo, mas não explica, antes, como os grupos políticos se formam e por que algumas pessoas são atraídas para a esquerda e outras para a direita. Este é o trabalho minucioso feito por Haidt, a partir de estudos genéticos e pesquisas de neurociência, sociologia e psicologia cognitiva, social, cultural e moral. "A resposta não é, como diriam os maniqueístas, porque algumas pessoas são boas e outras são más."
Em sua temporada na Índia, na verdade, ele notou a existência de um "código moral que enfatizava o autocontrole; a resistência à tentação; o cultivo do eu superior" e "a negação dos desejos do eu". Depois, começou a ver que "muitas matrizes morais coexistem dentro de cada nação", cada qual enfatizando alicerces distintos e fornecendo "uma visão de mundo facilmente justificável pela evidência observável e quase inabalável ao ataque de argumentos de pessoas de fora". Afinal, "fazemos nosso julgamento rapidamente", graças à intuição, e "somos terríveis ao procurar evidências que possam refutar esses julgamentos iniciais", em razão do nosso raciocínio socialmente estratégico: o "assessor de imprensa" que cada um faz de si em autodefesa.
"A moralidade agrega e cega", repete Haidt ao longo do livro. "Isso não é apenas algo que acontece com as pessoas do outro lado. Todos somos sugados para comunidades morais tribais. Nós nos agrupamos em torno de valores sagrados e, em seguida, compartilhamos argumentos post hoc sobre por que 'nós' estamos tão certos e 'eles' estão errados. Achamos que o outro lado é cego à verdade, à razão, à ciência e ao senso comum, mas na verdade todo mundo fica cego ao falar sobre seus objetos sagrados."
Para distinguir as matrizes de esquerdistas e direitistas, Haidt apresenta sua teoria dos alicerces morais (Cuidado/dano, Liberdade/opressão, Justiça/trapaça, Lealdade/traição, Autoridade/subversão, Pureza/degradação), explicando em quais dos seis as pessoas tendentes a cada lado do espectro se baseiam (inclusive por razões genéticas), em que grau e de que maneira.
"A esquerda constrói sua matriz moral sobre três dos seis alicerces, mas repousa de maneira mais firme e consistente sobre o alicerce do Cuidado", exemplifica o autor. "Para os esquerdistas norte-americanos, desde os anos 1960, acredito que o valor mais sagrado é cuidar das vítimas da opressão. Qualquer um que culpe tais vítimas por seus próprios problemas ou que demonstre ou apenas releve preconceito contra grupos de vítimas sacralizados pode esperar uma resposta tribal veemente."
Os outros dois alicerces predominantes na esquerda são os de liberdade e justiça - neste caso, de um tipo específico. "Para a esquerda, a justiça geralmente implica igualdade, mas, para a direita, ela é proporcionalidade - as pessoas devem ser recompensadas proporcionalmente pelo que contribuem, mesmo que isso garanta resultados desiguais."
A direita, porém, valoriza "todos os seis alicerces de forma mais ou menos igual". Os direitistas, embora resistentes a revoluções, "não se opõem a todos os tipos de mudanças (como a internet), mas revidam ferozmente quando acreditam que a mudança prejudicará as instituições e tradições que fornecem nossos exoesqueletos morais (como a família). Preservar essas instituições e tradições é o seu valor mais sagrado."
Já os libertários, também estudados por Haidt, sacralizam a liberdade individual.
"Uma vez que as pessoas se juntam a uma equipe política, elas se entrelaçam em sua matriz moral", explica o autor. "Veem a confirmação de sua grande narrativa em todos os lugares, e é difícil - talvez impossível - convencê-las de que estão erradas se argumentamos com elas a partir de uma matriz diferente."
3.
Cada um dos alicerces morais desperta nossa sensibilidade para sinais específicos.
O de Cuidado/dano "nos torna sensíveis a sinais de sofrimento e necessidade, nos faz desprezar a crueldade e querer cuidar daqueles que estão sofrendo".
O de Liberdade/opressão "nos torna sensíveis a qualquer sinal de tentativa de dominação. Isso desencadeia um desejo de se unir para resistir ou derrotar agressores e tiranos."
O de Justiça/trapaça "nos torna sensíveis a indícios de que outra pessoa provavelmente será um bom (ou mau) parceiro para colaboração e altruísmo recíproco. Ele nos faz querer evitar ou punir trapaceiros".
O de Lealdade/traição "nos torna sensíveis a sinais de que outra pessoa é (ou não é) um jogador da equipe. Ele nos faz confiar e recompensar essas pessoas, e nos faz querer ferir, marginalizar ou até matar aqueles que nos traem ou a nosso grupo".
O de Autoridade/subversão "nos torna sensíveis a sinais de posição ou status e a sinais de que outras pessoas estão (ou não) se comportando adequadamente, dada sua posição".
O de Pureza/degradação nos torna sensíveis a (e mais cautelosos com) "uma variedade diversificada de objetos e ameaças simbólicas". Ele propicia que consideremos algumas coisas como 'intocáveis', tanto de maneira ruim (porque é tão sujo ou poluído que queremos ficar longe) quanto de maneira boa (porque é tão santificado, tão sagrado, que queremos proteger, como bandeiras, cruzes, locais históricos, santos, heróis, a vida, o casamento e até princípios como liberdade, fraternidade e igualdade). "Se não tivéssemos um senso de repulsa, acredito que também não teríamos um senso de sagrado." O alicerce da Pureza é "usado mais fortemente pela direita religiosa, mas também é usado pela esquerda espiritual" e pelo movimento ambientalista, diz Haidt.
Em várias das 425 páginas do livro, o autor não se esquiva de aplicar esses conceitos a temas controversos do debate contemporâneo; de apontar políticas públicas cujas alegadas intenções se baseiam em determinados alicerces, mas cujos resultados prejudicam o que outros levam a defender; de destacar pontos essenciais para a saúde de uma sociedade defendidos a partir de cada matriz; e de mostrar como uma delas pode eventualmente servir de contraponto positivo aos excessos decorrentes da outra.
Considerando ideologia um conjunto de crenças sobre a ordem adequada da sociedade e como ela deve ser alcançada, Haidt anseia por um mundo em que as ideologias conflitantes se mantenham em equilíbrio e a discordância seja mais construtiva.
4.
O Brasil está longe, muito longe, do mundo sonhado pelo professor nova-iorquino.
Por quatro mandatos, a esquerda populista demonizou a divergência vinda de fora da sua matriz e desprezou qualquer representatividade cultural e política dos alicerces morais da direita, enquanto desvirtuava os seus próprios, transformando o Cuidado em mecanismo de compra de votos e perpetuação no poder, a Liberdade em alinhamento com ditaduras antiamericanas, e a Justiça em trapaça com esquemas de corrupção, tocados com empresários bilionários e descobertos em período de crise econômica.
Isto abriu caminho para a direita populista, que apontava a hipocrisia esquerdista e reivindicava a Lealdade à pátria, a volta da Autoridade e da ordem decorrente dela, e a Pureza de Deus, do casamento, da família e da vida; mas que se revelou trapaceira em gabinetes passados, uniu-se pela impunidade geral a velhos trapaceiros, recorreu às compras de apoio que denunciava, desprezou vidas e famílias alheias durante uma pandemia, alinhou-se à Rússia, subverteu o papel das Forças Armadas, e afrontou instituições decerto imperfeitas com intimidações e ameaças golpistas inaceitáveis.
"Somos um movimento de quem defende o amor, a paz, o humanismo e o afeto. De quem não suporta ver a fome e a miséria nesse país", afirmou Lula, em tuíte ilustrativo do quanto a retórica de sua campanha enfatiza o Cuidado e a noção de Justiça baseada na igualdade - alicerces sobre os quais ele construiu sua imagem pública, por isso mesmo sacralizada pela esquerda acadêmica, jornalística e política brasileira. Em nome da autoproclamada frente ampla pela democracia, em contraposição ao golpismo de Jair Bolsonaro, ela conclama e pressiona eleitores a focar exclusivamente nesses aspectos, ignorando que mensalão e petrolão resultavam em fraude ao sistema democrático.
Se de um lado o "mito" Jair Bolsonaro tem dificuldade em casar o assistencialismo de seu governo com uma retórica de Cuidado que lhe é estranha, do outro a sinalização de virtude sobre esse alicerce produz distorções também da língua portuguesa, como no caso da apresentadora do evento de lançamento da pré-candidatura de Lula, que, ao falar em "esclarecimento", logo trocou por "escurecimento", como se clarear os fatos para enxergá-los melhor tivesse a ver não com a luz da natureza, mas com a cor da pele humana e fosse assim uma palavra preconceituosa contra os negros oprimidos.
Com a formação de bolhas impenetráveis de ambos os lados e sem uma terceira via, qualquer crítica aos chefes, porém, resulta em respostas tribais veementes.
Como resumi em um tuíte que viralizou:
"Senão o PT volta. Senão Bolsonaro fica.
Se criticar Bolsonaro, você vira comunista pró-Lula. Se criticar Lula, vira fascista pró-Bolsonaro.
Se for 'nem Lula nem Bolsonaro', você é Lula para bolsonaristas e Bolsonaro para lulistas (que saíram do armário).
Bando de maniqueístas."
Pronto. Agora podemos conversar.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.