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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Moraes x Cintra: as distinções fundamentais

Colunista do UOL

10/11/2022 13h54

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I.

O debate público padece de uma dificuldade cognitiva comum a milhões de pessoas que se julgam aptas a participar ferozmente dele, sobretudo nas redes sociais: a confusão de categorias.

Todos os pontos de discussão se misturam em cabeças adestradas a sinalizar virtude pela mera escolha do suposto lado certo em qualquer episódio de ampla repercussão.

Isolar cada ponto e analisá-lo separadamente, sem perder a noção do todo, soa até ofensivo a essas pessoas, que associam o analista ao lado oposto ao delas, já que ele não parte das premissas tidas por automatismo como cláusulas pétreas dentro de uma bolha, mas, sim, dos fatos e registros disponíveis.

Os casos de decisão judicial sobre retenção de conta ou remoção de conteúdo são ilustrativos, porque já há grupos diferentes de pessoas que se posicionam automaticamente, seja em defesa dos autores das postagens, seja em defesa dos juízes, desembargadores ou ministros; seja em nome de uma liberdade genérica de expressão, seja em nome de um combate genérico a crimes virtuais.

Nem passa por cabeças viciadas em defender um lado a despeito dos elementos específicos de cada caso que é possível, por exemplo, enxergar problemas (ou componentes positivos) avulsos ou simultâneos na postagem, na decisão e até nas leis e resoluções em que esta se baseia, o que demanda não só a leitura dos itens originais, como também a separação de cada ponto de discussão para a respectiva análise.

Fazer um estudo de caso, no entanto, dá muito mais trabalho, e rende bem menos engajamento, que sair gritando "censura!" ou "bem feito!" nas redes - e não é por outro motivo que os estudos, em todos os sentidos, sejam menos comuns que a gritaria; e que geralmente sejam publicados quando ela já diminuiu (não sem antes o analista ter sido xingado pela recusa em emitir uma posição imediata tão rasteira quanto a dos xingadores), afinal a pressa do ativismo é inimiga das minúcias.

II.

Em artigo anterior, analisei a postagem feita por Marcos Cintra sobre a questão da unanimidade de votos em determinadas seções eleitorais. A sequência de tuítes foi removida por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do STF.

Como relator do inquérito das fake news, Moraes chegou a censurar, em 2019, a reportagem que revelou o codinome "amigo do amigo do meu pai", usado por Marcelo Odebrecht para referir-se ao ministro Dias Toffoli, do Supremo. Com o agravante da blindagem de um colega de Corte, atingido por notícia potencialmente comprometedora, o caso se tornou um marco da censura real, até porque o conteúdo da matéria jornalística era verdadeiro, como ainda se pode verificar no documento apresentado pela defesa do empresário, explicando a menção feita por ele em um e-mail enviado a executivos. Na ocasião, Moraes só recuou depois que Celso de Mello, então decano do STF, divulgou uma dura nota de repúdio, ainda que indireto.

"A censura, qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição da República", escreveu Mello.

No caso de Cintra, há elementos distintos, que obscurecem a realidade para levantar suspeitas infundadas, de modo que passo agora à análise da referida decisão, tomada no âmbito de outro inquérito, o das milícias digitais, aberto por Moraes como desdobramento do extinto inquérito dos atos antidemocráticos.

A apuração sobre tais milícias foi instaurada, segundo o ministro, em razão da "existência de uma verdadeira organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político absolutamente semelhantes àqueles identificados no Inq. 4.781/DF [o das fake news] com a nítida finalidade de atentar contra a Democracia e o Estado de Direito".

A decisão, porém, não fundamenta qual seria a ligação do ex-secretário da Receita com a organização criminosa investigada, nem apresenta conexão de sua postagem do dia 5/11 com outra fonte de desinformação sob a mira do inquérito, embora a imprensa tenha apontado os tuítes de Cintra como reverberação de parte do conteúdo da live de um aliado argentino de Eduardo Bolsonaro, divulgada no dia 4 e também derrubada.

Em relação à postagem do ex-secretário (repercutida por bolsonaristas que buscam dar a suas narrativas políticas a legitimação e a credibilidade de "pessoa pública, respeitada e famosa", "professor e PhD em Harvard"), o ministro afirmou genericamente que:

1) "Marcos Cintra profere ataques ao STF e ao TSE, bem como espalha notícias fraudulentas acerca do funcionamento das urnas eletrônicas e do processo eleitoral";

2) "Cintra utiliza as redes sociais para atacar as instituições democráticas, notadamente o TSE, bem como o próprio Estado democrático de Direito, o que pode configurar, em análise preliminar, crimes eleitorais".

3) "Essas circunstâncias permitem, portanto, a adoção de medidas que restrinjam a divulgação de conteúdo falso - eminentemente antidemocrático -, em evidente violação à liberdade de expressão, bem como a realização de diligências, de modo que os fatos apurados sejam completamente esclarecidos."

Em que pese a pressa de Moraes para conter a disseminação virtual do "conteúdo falso", após dias de tensão nacional com bolsonaristas bloqueando estradas e pedindo intervenção federal e militar, o caráter lacônico das considerações do ministro, desprovidas de um mínimo confronto direto com os respectivos trechos de Cintra, turbinam a percepção de arbitrariedade.

O enquadramento minucioso demanda tempo, mas, considerando até o tamanho da equipe de assessores jurídicos em gabinetes, alguma especificidade deveria constar em justificativas para a remoção urgente de publicações; senão, cristaliza-se o formato de reprodução de conteúdos e de alegações genéricas, que, não sendo necessariamente aplicáveis aos trechos, apenas camuflam decisões arbitrárias e atos de intimidação, baseados em critérios políticos e interesses outros que não a aplicação das leis.

III.

Moraes, no entanto, poderia ter argumentado que Cintra espalhou notícia fraudulenta, no sentido de enganadora, aglutinando sínteses imprecisas, exageradas e capciosas, ao citar resultado de "zero votos" de Bolsonaro "em centenas de urnas", "como em Franca, Osasco e Guarulhos", cogitando "que comunidades foram manipuladas" e afirmando, com ares de contraste, que "não há uma única urna em todo o país onde o Bolsonaro tenha tido 100% dos votos", o que só faria sentido especificando-se os votos totais.

Em quatro seções eleitorais, assim como ocorreu em 2018, o presidente ganhou por unanimidade em votos válidos, enquanto Lula venceu desse modo não em "centenas", mas em 143 urnas, ou seja: 1 centena, 4 dezenas e 3 unidades. Lula obteve 16.455 votos nesses locais específicos (incluindo aldeias indígenas, povoados quilombolas e estabelecimentos prisionais, não nos municípios inteiros), o que corresponde a apenas 0,77% de sua vantagem de 2,1 milhões sobre Bolsonaro.

O ex-secretário ainda considerou improváveis "centenas" ("senão milhares", o que é falso) de resultados absolutamente comuns em eleições presidenciais brasileiras. Em votações unânimes, inclusive, Lula ficou 185 seções abaixo do saldo de 328 obtido quatro anos antes por Fernando Haddad, quando Bolsonaro venceu a eleição e nenhum bolsonarista contestou esse número, ainda maior, do adversário.

Eis os saldos das últimas décadas:

2022

Lula (PT): 143

Jair Bolsonaro (PL): 4

2018

Jair Bolsonaro (PSL): 4

Fernando Haddad (PT): 328

2014

Dilma Rousseff (PT): 192

Aécio Neves (PSDB): 11

2010

Dilma Rousseff (PT): 259

José Serra (PSDB): 6

2006

Lula (PT): 234

Geraldo Alckmin (PSDB): 3

2002

Lula (PT): 33

José Serra (PSDB): 13

Ou seja: com base em notícia fraudulenta e falsas improbabilidades, que nem sequer apareceriam no relatório final do Ministéro da Defesa, Cintra levantou suspeitas sobre "todo o sistema", fazendo insinuações de manipulação de comunidades e eventual cumplicidade do TSE. De que modo esses elementos configuram ataque ao tribunal e à democracia, caberia a Moraes explicitar.

Na prática, o ministro enquadrou Cintra como potencial agente de milícia digital por ter recorrido a tais expedientes e afirmou que "estão presentes os requisitos legais necessários para a imposição de medidas cautelares previstas no art. 319, pois observados os critérios constantes do art. 282, ambos do Código de Processo Penal".

Moraes então determinou que o Twitter bloqueasse a conta do ex-secretário, sob pena de multa diária de R$ 100.000; que Cintra não reincidisse na publicação do conteúdo, sob pena de multa diária de R$ 20.000; e que a Polícia Federal realizasse a oitiva dele.

Embora tenha mencionado que os alegados ataques podem "configurar, em análise preliminar, crimes eleitorais", o ministro não citou expressamente, na decisão, a resolução 23.714, de 20 de outubro de 2022, editada pelo TSE na reta final das eleições.

Diz seu artigo 2º:

"É vedada, nos termos do Código Eleitoral, a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos."

O texto, portanto, justifica a remoção da postagem de Cintra pela exploração de fatos que podem ser considerados sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados sobre tais processos, considerando-se ainda que o período eleitoral vai até a data de diplomação dos eleitos, prevista para 19 de dezembro deste ano.

A multa imposta ao Twitter em caso de descumprimento também corresponde ao valor previsto por hora na mesma resolução - em outro sinal de que ela serviu como base.

Em 2021, houve uma tentativa no Congresso Nacional de suprimir o poder do TSE de editar resoluções, mas o item aprovado na Câmara acabou sendo barrado no Senado, deixando margem para a iniciativa da Corte.

O problema é o artigo 105 da Lei Geral das Eleições (9.504/97), segundo o qual o TSE tem até 5 de março para "expedir todas as instruções necessárias" para a fiel execução da legislação eleitoral. Essas regras, embora eventualmente refinadas após o prazo, precisam ser definidas até um ano antes do dia das votações, de modo que a edição da resolução 23.714 não observou o princípio da anualidade; mas, em nome da eficiência no combate a fake news, ela foi referendada no plenário do STF por 9 votos a 2.

Num país em que os três Poderes deixam tudo para cima da hora, seja por incapacidade de planejamento ou por conveniência, não se pode negar que Moraes tinha base jurídica em vigor para determinar a remoção do conteúdo de Cintra, ainda que haja críticas legítimas a essa base e aos caminhos que resultaram nela, bem como tenha sobrado açodamento e faltado clareza na argumentação do ministro.

IV.

Eu, Felipe, que lutarei até a morte pela circulação da verdade, nunca tive o amor bolsonarista por mentiras, falsos contextos e hostilidades descabidas, de modo que não saio gritando quando conjuntos verificáveis desse tipo são removidos e depoimentos coletados, sobretudo em momentos de convulsão social que requerem responsabilidade. Apenas prefiro que as regras sejam devidamente pré-estabelecidas e que as decisões sejam claras.