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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bolsonarismo expõe para o mundo um Brasil tacanho e violento

Colunista do UOL

24/06/2021 04h00

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Ao longo de nossa história diversos intelectuais têm dedicado-se a interpretar, do ponto de vista sociológico, o comportamento do povo brasileiro. De Gilberto Freyre a Oliveira Viana, passando por Raymundo Faoro, Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior, são recorrentes os debates sobre o dito "excepcionalismo brasileiro", nosso passado colonial, as questões de raça, o papel do Estado e o comportamento das elites do país.

Entre essas visões, uma que frequentemente vem à baila é a análise feita por Sérgio Buarque de Holanda que, em "Raízes do Brasil", fez surgir a expressão "homem cordial". Embora Buarque, de fato, tenha destacado o peso da coletividade e da afetividade na consolidação da identidade nacional brasileira, esse é, certamente, um dos conceitos mais vulgarizados e mal referenciados de que temos notícia.

Isso porque se, por um lado, a obra pode ser aplicada para propagar a ideia de que estaríamos diante de um povo solidário e expansivo, amistoso e avesso à guerra, por outro lado, também serve para explorar as dualidades de uma sociedade que é, antes de tudo, passional e impulsiva - sujeita, portanto, às destemperanças típicas da vida de excessos. A cordialidade brasileira, portanto, ao contrário do que o olhar desavisado poderia supor, não exclui a possibilidade de um mergulho profundo nos extremismos e na violência.

É, de certa forma, o que o bolsonarismo escancarou diante de nós nos últimos anos e, particularmente, no contexto de crise pandêmica. Perceba: não se trata de dizer que os problemas brasileiros tenham nascido com o bolsonarismo. Ao contrário, o bolsonarismo é aqui tratado como sintoma, não causa, do tipo de sociedade que formamos ao longo de nossa história. É expressão do Brasil profundo que vai além do futebol e do carnaval. É reflexo de uma sociedade profundamente desigual, ignorante e propensa ao uso da força.

Dados divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) no início de 2020 apontam que a desigualdade no Brasil teve o seu pior índice desde 2012 e que quase 70% das pessoas que recebem Bolsa Família não têm sequer acesso a saneamento básico. Trata-se de uma realidade dura e cruel, com efeitos que não são desprezíveis.

Quando o recorte é feito considerando aspectos raciais, o cenário é ainda mais desolador. Dados do IBGE, CNJ, Ministério da Justiça e outros órgãos oficiais revelam que, no Brasil, onde 56% da população se identifica como preta ou parda, esses grupos correspondem a apenas 17% dos senadores, 24% dos deputados, 18% dos membros da magistratura e 4,7% dos executivos das 500 maiores empresas. Paralelamente equivalem a 75% dos mortos em ações policiais e 62% dos presos no país.

Do ponto de vista da violência, vale lembrar que o Brasil aparece, recorrentemente como o país que mais comete homicídios em todo o mundo em números absolutos. Em termos relativos, que levam em consideração a população de cada país, costuma figurar no top 10. O Atlas da Violência do IPEA expõe números assustadores. Em 1980 a taxa de homicídios por 100 mil habitantes era de 11,69. Em 2017 chegou a 31,59. Foram 11.217 vidas perdidas em 1980 contra 65.602 em 2017. A curva, durante todo o período, é constantemente ascendente. Quando analisamos a taxa de homicídios na faixa etária de 15 a 29 anos saímos de 19,57 para 69,90 no mesmo período. Os números de homicídios de mulheres e de pessoas negras são igualmente alarmantes. Isso sem contar o dado já amplamente noticiado de que o Brasil, pelo 12º ano consecutivo, foi país que mais matou transexuais no mundo.

Do ponto de vista educacional, para além da dimensão puramente quantitativa, o Brasil sofre com o ensino de baixa qualidade e com elevados índices de analfabetismo funcional. Além disso, a equidade é um desafio permanente por aqui. Segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica de 2020, publicado pelo "Todos pela Educação", 13,6 anos de estudo corresponde à escolaridade média dos 25% mais ricos do país - 3,4 anos a mais do que os 25% mais pobres.

No topo disso tudo, outro ranking sobre o qual não temos muito a nos orgulhar: de acordo com relatório organizado pela ONU e publicado há poucos dias, o Brasil caiu 12 posições, durante a pandemia do coronavírus, no indicador mundial de felicidade. O país ocupa hoje a 41ª posição do planeta. O índice considera variáveis como PIB per capita, estruturas de apoio social, qualidade e expectativa de vida, liberdade e ausência de corrupção.

O bolsonarismo repousa sobre as desigualdades do Brasil e se alimenta dos preconceitos e ressentimentos criados por ela. Revela características pouco nobres de nosso povo: a agressividade, o patrimonialismo, a confusão permanente entre o público e o privado, a reação hostil diante dos limites impostos pelas leis e normas e, no fim do dia, uma inadequação social permanente diante de regras básicas típicas da liberdade civil, que é diferente da liberdade total.

Não deixa de ser profundamente simbólico, nesse sentido, que um presidente classificado como "mito" seja visto como um tipo ideal, nos termos weberianos, do "mito do homem cordial". Se, em algum momento, capitalizamos, mundo afora, nossa reputação internacional sobre a face positiva dessa narrativa, agora evidenciamos a todos também o nosso lado mais sombrio.