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Fernanda Magnotta

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Afeganistão, entre o dogmatismo de Washington e o pragmatismo de Pequim

Colunista do UOL

19/08/2021 04h00Atualizada em 19/08/2021 06h05

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Acompanhamos, nos últimos dias, a escalada de tensões no Afeganistão, com a retomada de poder pelo grupo Taleban. Enquanto, de um lado, os Estados Unidos e países europeus se ocupavam de esvaziar embaixadas e resgatar funcionários, de outro, a China reconhecia o novo governo e declarava disposição em construir, com ele, relações amistosas. Rapidamente, portanto, o Afeganistão se transformou em um microcosmos do que promete ser o mundo do século 21: um espaço de permanente confronto entre o dogmatismo de Washington e o pragmatismo de Pequim.

Por mais que o presidente norte-americano Joe Biden, ao reafirmar a decisão de retirar as tropas norte-americanas do Afeganistão, tenha tentado rejeitar o caráter missionário-cruzadista da incursão no país, essa é uma mensagem indigesta para quem tem boa memória.

Para além de desarticular a Al Qaeda e combater o terrorismo e as forças insurgentes na política afegã, a invasão de 2001 foi fortemente pautada no conceito de "nation building". Prevalecia, nos Estados Unidos, a ideia de que a democracia liberal era de importância vital para induzir relações pacíficas e cooperativas entre os Estados. Assim, na medida em que os instintos agressivos de líderes autoritários fomentariam a guerra, promover a liberdade nos conduziria à paz. Esse era o espírito que pautava a narrativa dominante naquele momento. Os Estados Unidos eram colocados como um exportador de valores e como tutores de um processo de transformação política e social no Afeganistão.

Depois de vinte anos de ocupação, a saída norte-americana abre espaço para que imponha, dessa vez, uma outra cartilha: a do pragmatismo chinês, que será marcada, prioritariamente, por interesses econômicos na região. Diferente do que costumam fazer os norte-americanos, não interessa aos chineses balizar relações bilaterais a partir de princípios morais ou políticos. O modelo chinês, como bem resumiu Joshua Cooper Ramo no clássico texto "O consenso de Beijing", está pautado em: i) modernização via inovação e saltos tecnológicos; ii) crescimento sustentável e distribuição de riqueza; iii) autodeterminação.

No caso específico do Afeganistão, as relações com o Taleban miram, primeiramente, os interesses no setor de minérios, particularmente de ferro e cobre, além de metais raros, muito úteis para a indústria de alta tecnologia.

Em segundo lugar, a China vislumbra desenvolver a infraestrutura necessária para integrar o Afeganistão ao "Belt and Road Initiative", o maior projeto chinês no campo internacional, que envolve a construção de estradas, portos e ferrovias conectando Ásia, África e Europa.

Em terceiro lugar, os chineses buscam, ao se aproximar do novo governo, extrair do Taleban o compromisso de que não apoiarão movimentos de independência da província chinesa de Xinjiang, na qual a maioria da população é muçulmana, sobretudo da etnia uigur.

Por fim, do ponto de vista geopolítico, a China está diante de uma oportunidade para eclipsar os Estados Unidos, ocupando não apenas o vácuo de poder deixado pelos Estados Unidos, mas também capitalizando sobre as falhas norte-americanas nessa operação e tornando sua ação hegemônica mais difícil na região.

Hoje, 19 de agosto, é feriado nacional no Afeganistão. Em condições normais, celebrar-se-ia a independência do país, ocorrida em 1919. Apesar disso, diante de tudo o que estamos assistindo e, na encruzilhada entre Washington e Pequim, está difícil encontrar forças para comemorar. Se o modelo norte-americano é arrogante, o modelo chinês é indiferente. Ambos são auto interessados. Em nenhum dos casos é sobre o Afeganistão.