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Crise na Ucrânia obriga os EUA a reverem prioridades de política externa
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Desde que tomou posse como presidente dos Estados Unidos, Joe Biden tem, sistematicamente, reforçado o compromisso em contrapor a política externa que teve lugar durante o governo de seu antecessor.
O trumpismo foi marcado, no campo internacional, por intenso apelo ao nacionalismo e ao protecionismo, por uma visão curto prazista, pelo insistente uso de mecanismos econômicos como instrumentos de barganha política e, sobretudo, por uma forte crítica à ordem liberal, frequentemente acompanhada do desejo de rever compromissos assumidos pelos Estados Unidos. A ideia era manter negociações duras em um contexto de elevada imprevisibilidade, com o objetivo de "aumentar o retorno sobre o investimento norte-americano".
Apesar de conquistas pontuais, o preço disso foi um progressivo isolamento dos Estados Unidos e a criação de vácuos de poder que rapidamente passaram a ser disputados por outras potências. Os norte-americanos minaram, por conta própria, sua liderança e abriram espaço para que novas redes de dependência fossem estimuladas mundo afora.
Ciente disso, Biden assumiu a Casa Branca propondo um restauro da presença norte-americana e da agenda multilateral, além de uma reaproximação em relação aos aliados mais tradicionais. Ao mesmo tempo, restituiu um discurso moralista, velho conhecido da política externa dos Estados Unidos, amparado, principalmente, na difusão de certas ideias e visões de mundo.
Biden tenta, desde então, "definir a agenda" da política internacional. Faz isso buscando nomear pautas sobre as quais as mobilizações passem a ocorrer, como, escolhendo, por exemplo, meio ambiente e democracia como assuntos prioritários sobre os quais os países precisam se debruçar.
Apesar disso, faz esses movimentos com pouca sorte e sob circunstâncias muito desfavoráveis. Em alguns campos, seu governo elevou as expectativas, sem ter condições de fazer mudanças concretas. Em outros, enfrenta dificuldades de implementação. Acima de tudo, e mais uma vez, como em tantas outras na história norte-americana, a agenda liberal, focada na difusão de valores e crenças parece esbarrar na agenda realista, predominante determinada pela lógica dos interesses geopolíticos mais óbvios, como territórios e recursos materiais de poder. É o que acontece agora no conflito entre Rússia e Ucrânia.
Um enfrentamento armado na região não estava nos planos de Biden, que ainda tenta exorcizar heranças de governos anteriores, como é o caso das guerras no Afeganistão, no Iraque e na Síria. Outra vez, assim como ocorreu durante a gestão Obama, o movimento do xadrez geopolítico, no entanto, obriga os Estados Unidos a olharem para a Ásia-Pacífico de forma diferente do que desejam os seus líderes.
Um termômetro interessante de como a crise atual está redesenhando a lógica de prioridades da diplomacia norte-americana, e obrigando os Estados Unidos a alterar seu rumo, está nas próprias páginas oficiais do Departamento de Estado nas redes. Desde de posse de Antony Blinken como chefe da pasta, e durante todo o ano de 2020, as postagens do Instagram da Secretaria de Estado giram, em sua esmagadora maioria, em torno dos temas originalmente caros ao governo Biden. Falam sobre o controle da pandemia, de vacinas e da mobilização em torno do consórcio da OMS; falam sobre desafios do clima e da agenda verde; falam sobre democracia, direitos humanos, diversidade (de gênero e racial, principalmente); falam sobre multilateralismo, com elevado foco no sistema ONU, no G20 e em arranjos regionais; além de dedicarem boa parte do espaço para destacar a importância de trocas bilaterais com países considerados chave em diversas partes do mundo, incluindo as Américas, a Europa, a África e a Ásia. Não há predominância de temas de segurança, mesmo diante da saída militar do Afeganistão. A Rússia é citada ocasionalmente, mas, geralmente, dentro do contexto de defesa de pautas anteriormente mencionadas, como envolvendo liberdades, por exemplo.
Do dia 07 de janeiro de 2022 em diante, porém, uma nova linha editorial parece tomar conta da página do Departamento de Estado naquela plataforma. Toda agenda anterior torna-se minúscula diante no protagonismo da situação envolvendo a OTAN e a Rússia. Os Estados Unidos passam a falar, ali, de forma intensiva e dura, não mais da promoção de uma agenda liberal de desafios transnacionais difusos, mas sobre soberania e integridade territorial, com ataques diretos e tomadas de posição como: "A Crimeia é da Ucrânia".
Sabemos que Biden está apenas reforçando rivalidades antigas. Já falamos, nessa coluna, sobre a longa trajetória de instabilidade nas relações entre os dois países e como isso, há muito tempo, aponta para uma deterioração mesmo nessa gestão. Também já explicamos quais são os objetos de disputa no caso da Ucrânia, em particular. Sabemos que um governo é feito de pautas ativas e de pautas passivas, aquelas que exigem resposta, mesmo quando estavam fora dos planos. Por reconhecer tudo isso, não pretendemos fechar questão ou insinuar que "tudo muda" para Biden diante da corrente tensão. Esses são temas importantes e o debates que, evidentemente, precisam ser feitos com acuidade e distanciamento.
No entanto, uma coisa parece clara: a crise que agora acompanhamos é mais do que apenas reluz. Ela tem a ver com a progressiva dificuldade dos Estados Unidos, enquanto hegemonia, de controlar a dinâmica e as narrativas do jogo internacional. Outra vez, são as circunstâncias da multipolaridade colonizando as vontades da superpotência.
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