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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

No mundo globalizado, a principal batalha de Putin não ocorre em Kiev

Pessoas protestam contra a invasão da Ucrânia pela Rússia, em Berlim, Alemanha - John MacDougall/AFP
Pessoas protestam contra a invasão da Ucrânia pela Rússia, em Berlim, Alemanha Imagem: John MacDougall/AFP

Colunista do UOL

01/03/2022 15h51

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Desde que a operação militar especial foi anunciada pela Rússia na semana passada, temos acompanhado, dia após dia, diferentes ações que visam desestabilizar a investida de Moscou. São inúmeras estratégias, que vão da tomada de posição formal de organizações internacionais e Estados nacionais, até a articulação descentralizada das mais diferentes forças transnacionais.

As nuances sugerem que a atual crise na Ucrânia é diferente do que vimos nos últimos anos. Não se trata da conflagração de mais um conflito análogo a outros de que temos memória. Por isso, talvez ele inaugure, neste século, uma "nova era de guerras". Estamos falando da complexa convivência entre o pré-moderno (civis despreparados lutando com recursos improvisados), o moderno (com ameaças nucleares, químicas e biológicas) e o pós-moderno (o enfrentamento no universo cibernético e das disputas em torno da verdade).

Estamos falando de uma conjunção de múltiplos atores agindo em diferentes níveis simultaneamente; de elos de interdependência jamais vistos anteriormente. Mais do que isso: estamos diante de sociedades inteiras que têm consciência, em tempo real, da violência e das mazelas da guerra, graças a superexposição midiática a que temos acesso hoje em dia. Essa não é apenas uma guerra televisionada 24 horas, mas sujeita à dinâmica peculiar das redes sociais e das ferramentas de comunicação instantânea.

Quando pensamos nas estruturas internacionais mais convencionais, como ONU e OTAN a resposta tem sido dura. Há sinais de que mesmo diante do veto russo no Conselho de Segurança, os países estariam dispostos a ir além. São atos simbólicos, como o esvaziamento das seções oficiais em que se pronunciava o ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov nessa terça-feira, até, quem sabe, a ação pragmática de evocar o recurso do "Uniting for Peace", ferramenta raramente utilizada no âmbito das Nações Unidas e que prevê, em casos de paralisia do Conselho de Segurança, decisões possam ser tomadas na Assembleia Geral.

No que diz respeito à OTAN, a lista de decisões é imensa. Vão desde discursos condenando a ação russa e rechaçando o reconhecimento da independência das regiões separatistas de Donetsk e Luhansk, até o oferecimento de equipamento militar e suprimentos para a Ucrânia.

Se fôssemos entrar no papel de outras instituições, regionais e universais, esse texto não teria fim, a começar pelo debate sobre os efeitos de eventuais investigações no âmbito jurídico, como no Tribunal Penal Internacional, por exemplo, onde o governo russo deve enfrentar acusações muito em breve.

Do ponto de vista dos Estados soberanos, por sua vez, predominam, de forma geral, as sanções e pressões econômicas, que vão de impedir os russos de acessar recursos para levantar novos financiamentos no mercado internacional, até restrições de transações econômicas e a exclusão de instituições do sistema SWIFT. São atos que, no contexto da desterritorialização do capital, podem estrangular a economia russa e causar danos de longo prazo para o abastecimento e prosperidade daquele país.

Estamos falando de impactos severos para empresas e bancos. Do acuamento de oligarquias e milionários russos. E, claro, em algum momento, da necessidade de socorro do governo às pessoas comuns, com aumento de inflação e queda de renda. Em menos de uma semana desde o início da incursão militar, testemunhamos o rublo derreter, fazendo eclodir uma crise cambial, os juros dispararam, e a bolsa que promete despencar tão logo seja reaberta.

Há corrida aos bancos e o congelamento de reservas do Banco Central russo, o que preocupa autoridades e especialistas. Enquanto a Ucrânia pleiteia uma adesão à União Europeia e o presidente Volodymyr Zelensky é ovacionado no Parlamento Europeu, a Rússia é tratada, por boa parte da comunidade internacional, como um pária. Ao lado de Putin há alguns poucos países declaradamente aliados, como é o caso de Belarus e Síria, por exemplo.

Se a aposta está na China como rota de fuga dos russos para os problemas econômicos e estratégicos, acompanhamos atentos os incômodos crescentes de Pequim, que segue hesitante. O governo chinês não condenou as ações russas, mas tampouco parece disposto a lidar com o ônus desse conflito. As últimas notícias mostram que a China se incomoda com o aumento da insegurança na região e a possibilidade de que o conflito fuja do controle.

Em encontro ocorrido hoje entre o ministro de Relações Exteriores da Ucrânia Dymtro Kuleba e o chanceler da China, Wang Yi disse que "deplora a eclosão do conflito" ao mesmo tempo em que a China "está extremamente preocupada com os danos aos civis". O isolamento é tão significado que até mesmo a Suíça, um país conhecido por sua neutralidade histórica, decidiu fechar questão sobre o tema e adotar todas as sanções impostas pela União Europeia contra a Rússia.

Como se isso tudo já não bastasse, no meio do caminho abundam, ainda, ações de grupos do setor privado, do terceiro setor, de comunidades epistêmicas e de outras lideranças influentes com o objetivo de isolar a Rússia. A Federação internacional de judô suspendeu o título do faixa preta do presidente Vladimir Putin, a Fifa excluiu a Rússia da Copa do Mundo de 2022 e a Fórmula 1 decidiu não realizar o GP da Rússia na temporada desse ano.

O Comitê Olímpico Internacional quebrou o silêncio usual e causou polêmica ao orientar as federações associadas a retirar Rússia e Belarus de eventos marcados para ocorrer nesses dois países, além de restringir a exibição de suas bandeiras e execução dos hinos nacionais em competições internacionais. No mundo desportivo, há limitações já anunciadas no campo da esgrima, vôlei e natação, além, claro, dos já citados anteriormente.

Na indústria do cinema, por sua vez, grupos importantes de Hollywood, incluindo Disney, Warner e Sony, anunciaram boicotes à Rússia, com suspensão de lançamentos no país. Plataformas digitais como YouTube, Netflix e Meta também pretendem restringir conteúdos russos e limitar o acesso a seus produtos. Em alguns lugares do mundo há quem discuta a suspensão de venda de bebidas vindas da Rússia, principalmente as vodcas dessa origem. Os chamados "boicotes individuais", nesse meio tempo, são uma realidade em diversos países, inclusive no Brasil. São pessoas e/ou empreendimentos que passaram a restringir o consumo de qualquer produto vindo da Rússia como forma de protestar contra as ações do governo Putin.

Há também um levante anti-Rússia que está instaurado no campo da música clássica. O Metropolitan Opera, em Nova York, anunciou, nos últimos dias, que pretendia romper laços com artistas pró-Putin. Na mesma direção, depois de ter sido pressionado a abandonar o Festival Internacional de Edinburgo, Valery Gergiev, um dos mais conhecidos maestros russos da atualidade, foi demitido da Orquestra Filarmônica de Munique. A cantora lírica Anna Netrebko foi afastada da Bavarian State Opera.

A crise ocorre, igualmente, no campo da dança, já que as restrições podem inviabilizar a temporada de Verão do Ballet Bolshoi na Royal Opera House de Londres. Nessa conta entram também as ações de figuras populares, como é o caso do ator Sean Penn, que foi à Kiev e que prepara um documentário sobre a invasão russa com o objetivo de sensibilizar o grande público sobre o assunto. Ele chegou a falar com a imprensa diretamente do Gabinete do Presidente da Ucrânia.

Em termos simples, embora várias dessas ações que estamos testemunhando não sejam, isoladamente, nenhuma novidade, elas, quando articuladas em cadeia, no mundo de interdependência e fluxos globalizados, prometem causar alguns efeitos inéditos.

Resumindo: é preciso reconhecer que não estamos no mundo unidimensional da Guerra Fria. Não se trata apenas de supremacia militar. Putin até pode conquistar a capital da Ucrânia, mas isso está longe de ser uma vitória. A guerra de 2022 é sobre equilibrar diversos pratos simultâneos no ar. Nisso, a Rússia está mais para um país emergente do que para uma superpotência.