Topo

Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Crise desmoraliza Putin e retoma debate sobre privatização da guerra

Vladimir Putin, presidente da Rússia - Sputnik/Alexei Babushkin/Kremlin via REUTERS
Vladimir Putin, presidente da Rússia Imagem: Sputnik/Alexei Babushkin/Kremlin via REUTERS

Colunista do UOL

25/06/2023 07h16

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Ainda é cedo para dizer quais terão sido os efeitos estruturais da recente crise envolvendo o Grupo Wagner e o governo Putin, na Rússia. Em todo caso, ela foi importante para provocar a reflexão sobre, pelo menos, dois aspectos: a própria longevidade de Putin no poder, e a necessidade de discutirmos a sério, nos fóruns pertinentes, o papel de empresas militares privadas/grupos mercenários nos grandes conflitos internacionais.

Sobre o primeiro aspecto, o episódio serviu para ilustrar a fragilidade dos laços de lealdade no Kremlin. Para manter-se no poder Putin angariou, ao longo dos anos, apoios de setores estratégicos: de empresários e oligarcas, de inúmeros altos funcionários do governo e membros do partido Rússia Unida, de grupos conservadores e nacionalistas e, claro, dos militares e serviços de segurança do país. Isso, somado ao fato de que o governo russo exerce controle significativo sobre a mídia estatal, permite a Putin moldar a narrativa e garantir legitimidade.

Para o governo russo, transmitir a imagem de coesão, sobretudo no contexto de uma guerra complexa como a que ocorre na Ucrânia, é fundamental para que o pacto de comprometimento se renove continuamente. Um episódio de deserção, como esse que acompanhamos recentemente, golpeia de morte a ideia de que Putin tem o controle absoluto sobre os russos. Traz à tona a existência de outras forças disputando poder no país e dispostas a embarcar em alianças que fragilizem o presidente.

Em regimes centralizadores de poder, como é o caso da Rússia de Putin, a autoridade do líder sobre as instituições governamentais, os meios de comunicação e a oposição é peça chave para manutenção do status quo. Se membros importantes do círculo interno, como figuras políticas influentes, militares de alto escalão ou outros poderosos atores começam a expressar descontentamento ou agir contra o líder, isso não só pode indicar perda de apoio, como também contribuir para o fortalecimento do discurso de que há espaço para questionar a estrutura estabelecida.

Geralmente isso vem acompanhado também de crescimento de movimentos de oposição clandestina, o aumento da pré-disposição em se realizarem protestos, greves ou boicotes e o consequente aumento da repressão, com endurecimento da censura, prisões arbitrárias, perseguição de opositores políticos e restrições à liberdade de expressão - tentativas desesperadas de manter o poder. No caso recente, ainda que a gestão da crise tenha sido rápida e aparentemente favorável ao governo, ela não deixa de macular a capacidade de comando de Putin ao desmoralizá-lo publicamente.

Sobre o segundo aspecto, envolvendo a preocupação com exércitos mercenários, o episódio reacende, nas relações internacionais, um debate já antigo: como lidar com a privatização da guerra? O Grupo Wagner, que agora captura nossa atenção, é apenas um dos atores dessa discussão, entre vários outros. Anos atrás estava no centro das conversas a Academi (anteriormente conhecida como Blackwater), por exemplo. Isso porque esses grupos têm tido protagonismo em várias regiões do mundo, como Síria, na Líbia, na República Centro-Africana e no Iraque.

A ação movida apenas por interesses econômicos tem desembocado em violações sistemáticas de direitos humanos, agravamento de tensões e desestabilização política em vários continentes, implicado no aumento dos riscos de escalada por ausência de controle e coordenação, além impactar na reputação de quem que os contrata.

Como não estão vinculados às leis e regulamentos militares tradicionais, empresas militares privadas ou grupos mercenários tendem a acreditar que podem agir sem restrições, já que não são submetidos aos mesmos mecanismos de responsabilização que os exércitos regulares. Além de poder ser vista como uma prática antiética e irresponsável, isso pode levar a consequências políticas e diplomáticas adversas muito preocupantes, como acabamos de experimentar no caso russo.

Parece claro ser preciso, portanto, investir tempo e capital político, nos diversos órgãos de governança global, para limitar e constranger ações paramilitares. A pergunta que não quer calar nesse caso é: a quem interessa abrir mão desse tipo de recurso?