O gol (contra) do chanceler brasileiro
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O chanceler Ernesto Araújo, no pseudo-balanço de suas conquistas em 2019 publicado na noite de sábado, atacou a imprensa e garantiu que a credibilidade do país pelo mundo avançou sob sua gestão. Além disso, voltou a assegurar que sua diplomacia não era ideológica.
Numa estratégia mais que conhecida entre demagogos, ele negou a realidade.
Ao longo do ano, tive acesso a mais de uma dezena de telegramas confidenciais. Alguns com sua própria assinatura. E as instruções mostram que sua política externa é essencialmente ideológica, com raros traços de realismo impostos por militares e exportadores agrícolas nacionais. Também percorri, como faço há quase 20 anos, os corredores da ONU, OMC, OMS, OIT e tantos outros organismos de forma quase diária. E, nesses fóruns internacionais, passamos ao longo dos últimos doze meses de alvos de chacota a motivo de uma imensa preocupação.
O que era "divertido" no início do ano se transformou em um pesadelo para governos que, por décadas, viram o Itamaraty como referência.
Também descobri que Ernesto comanda dezenas de funcionários em Brasília que não perdem a oportunidade para criticar o chefe, vazar documentos e quebrar a rígida hierarquia do Itamaraty.
Mas o que mais chama a atenção no vídeo feito com uma sofisticação comparável ao governo é a lista de fatos que o chanceler se esqueceu de mencionar em 2019 e de seu recurso ao futebol para explicar à arquibancada a ausência de notícias positivas da imprensa.
Mas a realidade é que, no seu balanço do ano, ele não citou que seu ministério se recusou a dar à imprensa por dias os detalhes do tratado assinado com a UE, enquanto repetia que o acordo era "histórico". Dias depois, descobriu-se que as cotas negociadas para as exportações brasileiras eram inferiores aos patamares considerados como "mínimos" por antigos governos brasileiros.
Ex-negociadores sem qualquer relação com o governo Lula ou Dilma comentaram ao descobrir os detalhes: "entregamos tudo". Meses depois, foi a vez de a própria UE indicar em um encontro que havia levado muito mais que cedido na negociação com o Brasil.
Tampouco ele explicou que a assinatura do tratado não significa sua ratificação. Assustados diante da postura do Brasil em temas climáticos, dezenas de deputados pela Europa alertaram que não vão dar o sinal verde ao tratado comercial nas atuais condições. Até mesmo aqueles que defendem o acordo chamaram a política ambiental de Bolsonaro de "abominável".
Com os EUA, Ernesto comemorou que um telefonema de Bolsonaro a Trump derrubou a tentativa de os EUA impor uma sobretaxa ao aço brasileiro. Mas ele não contou que seu governo levou um susto quando acordou e leu o Tweet de Trump com o anúncio de que taxaria o Brasil. Um aliado faz ameaças pelas redes sociais, sem antes avisar o parceiro?
Por semanas, a mera ameaça da Casa Branca levou o setor siderúrgico nacional a ver uma suspensão de todos os novos contratos com clientes americanos.
O que ele comemora é algo que não deveria nem mesmo ocorrer. Mas, ainda assim, o conteúdo do telefonema continua sem a devida transparência. Os americanos pediram algo em troca de retirar a ameaça? Houve uma negociação ou uma futura promessa?
Ernesto tampouco explicou como decidiu abrir o mercado do trigo para o produto americano, em detrimento dos produtores argentinos, nossos aliados no Mercosul.
Ele não contou que, depois de descobrir uma carta de Mike Pompeo, secretário de Estado do governo americano, para a OCDE em que não incluía o Brasil entre os países que a Casa Branca queria ver na entidade, o governo foi pedir explicações aos EUA pela atitude. Nas horas seguintes à revelação, os americanos garantiram nas redes sociais que continuavam a apoiar a adesão do Brasil ao clube dos ricos. Mas jamais mandaram uma nova carta para a OCDE para "corrigir" o texto assinado por Pompeo. Na diplomacia, o que ainda conta é a correspondência oficial.
O chanceler não contou no vídeo que um de seus melhores embaixadores teve sua eleição vetada pela Índia para presidir uma negociação na OMC. O motivo: os indianos acusavam o Brasil de ter abandonado os interesses dos países emergentes ao aceitar as imposições americanas na OMC.
Ernesto também se esqueceu de dizer que nossas relações com Israel estão baseadas em uma aliança com um primeiro-ministro indiciado por corrupção. Tampouco mencionou em seu balanço do ano que apostou em Macri. E perdeu. Que apostou em Salvini. E perdeu. Que menosprezou Greta. Mas o gol nem teve tempo de ser comemorado. No contra-ataque, a pirralha foi eleita a pessoa do ano. Ele não contou que seu chefe ofendeu líderes estrangeiros, suas esposas e seus pais assassinados.
Ernesto não contou que sua aliança na Europa é com o governo que é acusado de abandonar a democracia, silenciar a imprensa e acabar com a independência do Judiciário.
Valores brasileiros? Bom saber.
Em seu balanço, o chefe da diplomacia de Bolsonaro (parece até paradoxo) não mencionou que a OIT chegou a colocar o Brasil na lista suja dos países suspeitos de violar leis trabalhistas. Tampouco aparece uma referência ao fato de ter sido 37 vezes denunciado na ONU por violações de direitos humanos. Sem contar o processo que eventualmente pode sofrer no Tribunal Penal Internacional.
Mais recentemente, o sub-Comitê contra a Tortura da ONU chegou à conclusão que o Brasil viola seus compromissos internacionais no combate à tortura. Mas, claro, para um governo que elogia Pinochet, tal conclusão deve até ser considerada como um golaço.
Até hoje, não sabemos por qual motivo somos amigos da ditadura saudita. Ou por qual motivo felicitamos num comunicado de imprensa a eleição da Mauritânia para o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Na Mauritânia, mulheres vão para prisão por adultério e a lei permite a pena de morte em alguns casos contra homossexuais.
Ele também não disse que o projeto de mudança da embaixada para Jerusalém viola resoluções do Conselho de Segurança da ONU. Para 2020, ele não mencionou que vamos sediar uma reunião promovida pelos EUA e rejeitada por grande parte dos principais atores por ser considerada como uma ofensiva anti-Teerã.
Quando foi eleito ao Conselho de Direitos Humanos, Ernesto não contou que barganhou votos e que a vitória não teve qualquer relação com... direitos humanos. Ah, e não contou que fez campanha contra uma candidatura da Costa Rica para tentar frear os venezuelanos na ONU. Claro, o risco era de que os centro-americanos roubassem os votos do Brasil.
Ficou ainda devendo uma resposta ao STF, que lhe cobrou transparência e a entrega das instruções que ele enviou aos diplomatas sobre questões de gênero. Tampouco contou que suas propostas de modificação de textos de resoluções sobre mulheres foram amplamente derrubadas em reuniões em que eu estive presente.
Quando Ernesto pede em seu vídeo que se acredite apenas na versão oficial e que o público deixe de ler a imprensa, ele está dizendo: não verifiquem os detalhes, não descubram o que dizem os telegramas confidenciais, não busquem saber o que ocorreu nos bastidores.
Fiquem na arquibancada. Queremos torcida. Não queremos cidadãos.
VAR? Impossível diante da qualidade da filmagem.
Enfim, se queremos falar de um balanço de política externa e do papel da imprensa, vamos deixar as comparações com o futebol de lado. Não apenas a realidade é mais complexa. Mas recorrer a isso é subestimar a inteligência dos cidadãos e até uma ofensa ao futebol.
Em um ano no comando do Itamaraty, Ernesto de fato reposicionou o Brasil no mundo. Mas, desta vez... Opa, opa... calma lá... mais um gol da Alemanha.
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