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Jamil Chade

Pandemia gera repressão, censura e violência na periferia do mundo

Kajodi Devi, de 90 anos, caminha de Déli em direção a sua vila - SALIK AHMED / OUTLOOK
Kajodi Devi, de 90 anos, caminha de Déli em direção a sua vila Imagem: SALIK AHMED / OUTLOOK

Colunista do UOL

03/04/2020 04h00

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1 milhão de casos, mais de 50 mil mortes e bilhões confinados. Se a pandemia levou países como a França, China, Itália ou Espanha a contar com uma elaborada estratégia de abastecimento, a imposição de restrições e quarentenas pelo mundo também se transformou em violência e caos. Enquanto cidades como Paris, Roma ou Barcelona os passarinhos voltaram a ser escutados pelo moradores, na periferia do mundo o som é de ação policial, censura contra a imprensa e atos que tem deixado a ONU e entidades de direitos humanos alarmadas.

Nesta semana, o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte deu ordens para que a polícia atire em quem manifestar durante a quarenta imposta. No dia 1 de Abril, num discurso televisivo, ele alertou: "não hesitarei". "Em vez de causar problemas, vou mandar-vos para a sepultura", disse. A Polícia Nacional Filipina indicou que mais de 17 mil pessoas já foram detidas por violações relacionadas com as ordens de confinamento.

Entidades ainda apontam que surgiram relatos de punições desumanas contra as pessoas que violam a quarentena. Alguns foram obrigados a sentar-se durante horas ao sol quente ou ser detidos em jaulas para cães.

Residentes de certas áreas disseram à entidade Anistia Internacional que a polícia tem recorrido à dispersão violenta dos manifestantes e os atingiu com paus de madeira. Segundo a ong, numa das localidades, as vítimas incluíam um homem com o seu bebé que se encontrava na zona para recolher ajuda financeira.

Já a Human Rights Watch chamou a atenção para o fato de que tal ação de detenção é muito provavelmente contraproducente, já que os infractores são depois colocados em instalações de detenção superlotadas, e com mais chances de serem contaminados.

Para o diretor da seção filipina da Anistia, Butch Olano, "é profundamente alarmante que o presidente Duterte tenha alargado sua política de "atirar para matar". "A força letal e descontrolada nunca deve ser utilizada numa emergência como a pandemia", disse.

"Os métodos abusivos utilizados para punir os acusados de violar a quarentena e o vasto número de detenções em massa que têm sido efetuadas até à data, principalmente contra pessoas pobres, são outros exemplos da abordagem opressiva que o governo adota contra aqueles que lutam contra as necessidades básicas", declarou.

Numa nota enviada aos governos, os presidentes dos dez comitês da ONU para Direitos Humanos alertaram que as autoridades precisam "garantir o respeito pelos direitos humanos", mesmo quando a situação é de emergência sanitária.

Hilary Gbedemah, que representa os comitês da ONU, indicou que um número crescente de estados tem imposto controlos rigorosos que afetam os direitos humanos, tais como limitações à liberdade de circulação e restrições às assembleias pacíficas e à privacidade.

"Estes controles devem ser efetuados de acordo com um quadro jurídico válido. Nos países que declaram o estado de emergência, essa declaração deve ser excepcional e temporária, estritamente necessária e justificada devido a uma ameaça à vida da nação", afirmou Gbedemah.

"O estado de emergência, ou quaisquer outras medidas de segurança, deve orientar-se pelos princípios dos direitos humanos e não deve, em circunstância alguma, servir de desculpa para anular a dissidência", acrescentou.

Migrantes

De fato, a situação de violência policial vai muito além de Duterte. Na Índia, uma ação do governo para desinfectar um bairro acabou em caos, depois que parte da população acabou sendo exposta aos produtos químicos.

Nas redes sociais, dezenas de vídeos circularam desde o início da semana com imagens de policiais espancando com bastões pessoas que não cumpriam a quarentena, o que levou um dos líderes da oposição, Shashi Tharoor, a escrever uma carta ao primeiro-ministro Narendra Modi para apelar para que ele desse um fim à violência policial.

Mas foi a situação dos milhões de migrantes que gerou maior tensão. Na sequência do anúncio da quarentena, muitas pessoas ficaram sem trabalho e sem condições de pagar a renda e a alimentação. Sem capacidade de se sustentarem nos centros urbanos e diante da suspensão dos transportes públicos, centenas de milhares de homens, mulheres e crianças migrantes foram obrigados a percorrer centenas de quilômetros a pé, tentando chegar às suas aldeias e estados de origem. Alguns morreram ao fazer a viagem.

Em 29 de Março, num esforço para conter a propagação do vírus, o Ministério do Interior emitiu uma ordem aos estados para interceptarem os migrantes no seu regresso a casa e exigirem a sua entrada em quarentena por um período de duas semanas.

A chefe dos direitos humanos da ONU, Michelle Bachelet, disse que está "angustiada" com a situação de milhões de migrantes afetados.

"O confinamento na Índia representa um enorme desafio logístico e de implementação, dada a dimensão da população e a sua densidade, e todos esperamos que a propagação do vírus possa ser verificada", afirmou a Alta Comissária. "No entanto, é importante assegurar que as medidas em resposta ao COVID-19 não sejam aplicadas de forma discriminatória nem agravem as desigualdades e vulnerabilidades existentes", alertou.

Em alguns estados, policiais ainda estão carimbando as mãos das pessoas em quarentena, supostamente para garantir a sua permanência em casa, e colando avisos nas portas das casas.

A censura contra a imprensa também se instalou em diferentes países e levou governos como o do Egito a retirar o credenciamento de jornalistas estrangeiros que tinham questionado o número real de casos da doença. Na Hungria, o governo passou uma lei que permite a prisão por cinco anos de um jornalista que difundir notícias falsas. E quem define o que é notícia falsa é o governo.

Medidas de restrição ao acesso à informação ainda foram estabelecidas na Turquia, Camboja, China, Tailândia, Rússia, Irã, Honduras e Cingapura.

Gás e Tosse

Na África, a situação é especialmente tensa. Na África do Sul, ativistas denunciaram o excesso de força usada em Soweto e investigações estão em andamento sobre a suspeita de que três pessoas teriam morrido como resultado de uma operação para implementar a quarentena. No total, pelo menos 55 pessoas já foram detidas no país por não respeitar as regras de distanciamento social.

Jovens foram ainda humilhados por forças de ordem e balas de borracha, gás lacrimogéneo e chicotes têm sido utilizados para manter o distanciamento social nas filas de compras. "Parece ser a única forma de as autoridades saberem lidar com a população, através da violência e da humilhação", disse Shenilla Mohamed, diretora-executiva da Anistia Internacional para a África do Sul.

Em Dakar, no Senegal, denúncias também foram feitas sobre a forma violenta pela qual a polícia passou a implementar a quarentena. As operações violentas ocorreriam principalmente durante a noite.

Em Ruanda, um dos primeiros países a impor quarentena na África, duas pessoas foram mortas nesta semana, depois de terem desafiado a polícia.

No Niger, 15 militantes foram detidos pelo governo, sob a justificativa de que estavam violando as recomendações de não realizar eventos públicos. O caso ocorreu dias antes do país ter seu primeiro caso confirmado do vírus.

No início da semana, a tentativa da polícia do Quênia em estabelecer uma quarentena num dos bairros da capital Nairobi resultou em violência. O toque de recolher acabou levando a troca de tiros entre moradores e a polícia, acusada de ter entrado na região espancando quem estava fora de casa. Pelo menos um garoto de 13 anos morreu.

Em Kisumu, no oeste do país, a polícia entrou em choque com donos de lojas e vendedores de rua diante da ordem que deveriam abandonar seus negócios.

Enquanto isso, na cidade portuária de Mombasa, a polícia usou gás lacrimogêneo para impor a quarentena. O resultado: dezenas de pessoas tossindo por conta do efeito do gás, em uma região de grande aglomeração.