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Em discurso agressivo, Brasil abandona diplomacia e ataca relatores da ONU

O ministro de Relações Exteriores,  Ernesto Araújo, e o deputado Eduardo Bolsonaro durante audiência pública na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados.   - Marcelo Camargo / Agência Brasil
O ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e o deputado Eduardo Bolsonaro durante audiência pública na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados. Imagem: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Colunista do UOL

30/04/2020 12h32

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O Itamaraty abandona a diplomacia que tradicionalmente marcou a gestão da política externa brasileira e usa uma reunião internacional nesta quinta-feira para atacar de forma dura os relatores das Nações Unidas que criticaram o governo de Jair Bolsonaro. Agressiva, a posição brasileira causou mal-estar entre delegações estrangeiras e relatores da ONU.

Nesta semana, os especialistas denunciaram o governo brasileiro diante do que chamam de "políticas irresponsáveis" durante a pandemia da Covid 19. "A epidemia ampliou os impactos adversos de uma emenda constitucional de 2016 que limitou os gastos públicos no Brasil por 20 anos", disseram o especialista em direitos humanos e dívida externa, Juan Pablo Bohoslavsky, e o relator especial sobre pobreza extrema, Philip Alston. "Os efeitos são agora dramaticamente visíveis na crise atual". A declaração ainda foi endossada por outros cinco relatores, além do Grupo de Trabalho da ONU sobre discriminação contra mulheres e meninas.

Nesta quinta-feira, numa reunião virtual do Conselho de Direitos Humanos da ONU para avaliar o impacto da doença, a embaixadora do Brasil Maria Nazareth Farani Azevedo optou por não dar qualquer detalhe sobre como o governo tem agido e preferiu usar seu tempo para acusar os relatores de ignorar as vítimas da crise.

"Estamos confrontando a tarefa de defender renda e vidas", disse. "Isso é a crise mais desafiadora de nossa história recente. Esse é o momento de cooperação. Não competição. Não é tempo de confrontação. Mas sim de conforto", afirmou a diplomata.

Num ataque, ela indicou que relatores devem cuidar das vítimas de violações e garantir que a resposta a Covid-19 esteja baseada nos direitos humanos. "Não é o tempo para que relatores tentem usar a pandemia e a tragédia de famílias para fazer avançar suas agendas", acusou, num gesto interpretado como uma pressão pouco comum.

Ela indicou que o governo ficou "chocado" ao ver que alguns relatores acusaram o Brasil por medidas econômicas tomadas há quatro anos pelo Congresso. Segundo ela, a Emenda Constitucional 95 "não limita a capacidade do governo em aumentar gastos públicos para proteger os mais vulneráveis"

De acordo com a diplomata, o comunicado emitido pelos relatores contra o Brasil não condiz "nem com a realidade, muito menos com os fatos". Ela explicou que apresentou dados aos relatores. Mas a posição do governo teria sido ignorada.

"Sempre que alguns relatores fazem algo assim, com comunicados de imprensa com alegações sem base, eles não estão trabalhando para proteger as vitimas de violações de direitos humanos, que devem ser o único objetivo", alertou.

Segundo ela, tais relatores "estão trabalhando contra o sistema desenhado para proteger as pessoas" e trabalhando contra sua "credibilidade e legitimidade". Para ela, as vítimas não eram o foco dos relatores.

O comportamento da embaixadora, que subiu na carreira durante a gestão do PT, deixou ongs indignadas.

"O Brasil reforça sua posição de uso do seu assento e da sua voz nas Nações Unidas não para promover direitos mas sim para atacar o sistema internacional, como fazem outros países como o Egito e a Venezuela", afirmou Camila Asano, Diretora de Programas e Incidência da Conectas Direitos Humanos.

"Muito nos surpreende a fala da Embaixadora de que a Emenda 95 não tem impacto ou relação com a atual crise causada pela pandemia do novo coronavírus quando justamente o maior gargalo para sua resolução é o investimento público no sistema de saúde e o investimento social para responder aos efeitos de longo prazo causados pela crise", disse.

Na reunião desta quinta-feira, um dos relatores deu uma resposta indireta ao Brasil, indicando que também tem sido construtivo. Mas com aqueles governos que tem algo a mostrar.

O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) também reagiu. "Apoiamos firmemente a declaração conjunta de vários Procedimentos Especiais que relatam as políticas econômicas e sociais irresponsáveis que colocam milhões de vidas em risco, refletindo a realidade no terreno, tendo em vista as drásticas medidas de austeridade que congelam os gastos sociais por 20 anos", declarou a entidade ligada à CNBB.

Fazendo muita coisa

A diplomata ainda usou o discurso para dizer o que o governo tem feito para lidar com a crise. Mas não deu números e omitiu o fato de que seu presidente minimizou por semanas a situação. Ela tampouco mencionou os repetidos ataques do governo contra a OMS, inclusive por parte do chanceler Ernesto Araújo.

"O Brasil fez muito na área de saúde, proteção social", disse, de maneira vaga. "Temos um sistema universal de saúde, estamos tratando cada um, rico ou pobre, indígenas, populações vulneráveis", garantiu. "Todos tiveram acesso ao tratamento e remédios sem custo", disse.

Ela ainda citou medidas de proteção social e ações contra a violência doméstica. "Estamos fazendo muita coisa", insistiu, ainda sem dados. A embaixadora também indicou que enviou cartas aos chefes de instituições e agências da ONU nas últimas semanas.

Denúncia

A nota dos relatores que tanto irritou o governo declarava: "as políticas econômicas e sociais irresponsáveis do Brasil colocam milhões de vidas em risco". A crítica ocorre depois que uma série de instituições brasileiras recorreram às Nações Unidas para denunciar a postura do presidente Jair Bolsonaro, que optou por ignorar as recomendações da OMS. Outra iniciativa foi a dos ex-ministros da Saúde, Alexandre Padilha, Humberto Costa e Arthur Chioro, de denunciar à OEA e à ONU a atuação de Bolsonaro diante da pandemia.

Os ataques dos relatores, agora, não resultam em medidas concretas contra o governo. Mas aprofundam o status de pária e confirmam a desconfiança internacional em relação ao Executivo. Nesta semana, o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos já havia demonstrado "preocupação" sobre o Brasil, enquanto a OMS indicou que quem a ouviu em janeiro está, hoje, em uma situação melhor.

De acordo com eles, apenas 10% dos municípios brasileiros possuem leitos de terapia intensiva e o Sistema Único de Saúde não tem nem a metade do número de leitos hospitalares recomendado pela Organização Mundial da Saúde.

"Os cortes de financiamento governamentais violaram os padrões internacionais de direitos humanos, inclusive na educação, moradia, alimentação, água e saneamento e igualdade de gênero", afirmaram.

"O sistema de saúde enfraquecido está sobrecarregado e está colocando em risco dos direitos à vida e a saúde de milhões de brasileiros que estão seriamente em risco", disseram, "Já é hora de revogar a Emenda Constitucional 95 e outras medidas de austeridade contrárias ao direito internacional dos direitos humanos", apontaram.

Os especialistas denunciaram ainda o fato de o governo estar priorizando a economia sobre a vida das pessoas.

"Em 2018, pedimos ao Brasil que reconsiderasse seu programa de austeridade econômica e colocasse os direitos humanos no centro de suas políticas econômicas", disseram. "Também expressamos preocupações específicas sobre os mais atingidos, particularmente mulheres e crianças vivendo em situação de pobreza, afrodescendentes, populações rurais e pessoas residindo em assentamentos informais ".

Economia acima da Vida

Os relatores ainda condenaram a política de colocar a "economia acima da vida", apesar das recomendações de direitos humanos e da Organização Mundial da Saúde. "Economia para quem?", questionaram. "Não pode se permitir colocar em risco a saúde e a vida da população, inclusive dos trabalhadores da saúde, pelos interesses financeiros de uns poucos", insistiram.

"Quem será responsabilizado quando as pessoas morrerem por decisões políticas que vão contra a ciência e o aconselhamento médico especializado?", questionaram.

Os relatores não deixaram de elogiar alguns avanços. "A renda básica emergencial, bem como a implementação das diretrizes de distanciamento social das autoridades subnacionais, são medidas de salvamento de vidas que são bem-vindas. No entanto, é preciso fazer mais", alertam.

"Em uma recente declaração e carta aos governos e instituições financeiras internacionais, eu forneci recomendações econômicas, fiscais e tributarias concretas", disse Bohoslavsky.

"A crise da COVID-19 deve ser uma oportunidade para os Estados repensarem suas prioridades, por exemplo, introduzindo e melhorando os sistemas universais de saúde e proteção social, bem como implementando reformas tributárias progressivas, disseram os especialistas da ONU.

"Os Estados de todo o mundo devem construir um futuro melhor para suas populações, e não valas comuns", completaram.