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Jamil Chade

Derrubada de estátuas acelera debate sobre como descolonizar o presente

Estátua decapitada de Cristóvão Colombo em Boston - AFP
Estátua decapitada de Cristóvão Colombo em Boston Imagem: AFP

Colunista do UOL

12/06/2020 05h06Atualizada em 24/08/2020 11h39

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A Suíça nunca teve escravos africanos. Não tem acesso ao mar e jamais teve colônias. Ainda assim, na pacata Neuchatel, uma estátua chama a atenção por sua placa. Nela, as autoridades apontam que os cidadãos locais agradecem e reconhecem os benefícios deixados por um certo David de Pury. Na placa, Pury é descrito apenas como um homem que teve sua "fortuna adquirida no comércio". A estátua está situada num dos locais mais nobres da cidade, justamente na Praça de Pury.

Pury, de fato, foi um dos principais atores do financiamento do tráfico de escravos entre 1761 e 1786. Filho de uma família que possuía escravos na Carolina do Sul, ele primeiro se especializaria no comércio de diamantes brasileiros. Mas logo passaria a integrar a South Sea Company, empresa com sede em Londres e que, durante sua existência, transportou 65 mil escravos da África para as Américas.

Com a eclosão das manifestações antirracistas nos EUA e seu desembarque na Europa, um elemento passou a fazer parte das novas reivindicações: o questionamento de nomes de ruas e praças, muitas das quais identificadas com um passado colonial brutal e cujas marcas continuam até hoje.

Para os manifestantes, o racismo não está apenas na falta de oportunidades, na diferença salarial ou na violência policial. Mas também marcado na geografia e referências das diferentes cidades. Não são poucos os grupos que alertam que, ao manter tais símbolos, cidades continuam a prestar homenagens aos opressores.

Dentro dos governos e em centros acadêmicos, o processo é acompanhado de perto. Nos últimos meses, autoridades passaram a ser questionadas abertamente sobre a possibilidade de que se negocie uma reparação por conta da escravidão. Na Suíça, uma comissão foi formada para estudar o tema, enquanto países do Caribe já trabalham sobre o assunto.

Há também uma pressão cada vez maior para que governos europeus iniciem um processo para avaliar quais obras de arte e peças arqueológicas levadas durante o período colonial poderiam ser devolvidos aos seus locais de origem. Na França, o governo de Emmanuel Macron deu a missão a historiadores para identificar essas coleções.

Para movimentos anti-racistas, isso é ainda pouco e a ira das ruas poderia acelerar um processo maior de obrigar estados inteiros ou regiões a confrontarem seus passados escravocratas e o conturbado período colonial.

Do norte dos EUA ao estado da Flórida, várias estátuas de Cristóvão Colombo foram vandalizadas desde a semana passada. Nos últimos anos, dezenas de cidades pelos Estados Unidos já substituíram um feriado em outubro dedicado ao navegador por uma homenagem aos indígenas locais.

Um movimento também ganha força para que referências públicas aos estados confederados sejam retiradas de praças e prédios. Esses estados foram os que resistiram ao fim da escravidão, abrindo uma guerra civil nos EUA. De acordo com o Southern Poverty Law Center, existem cerca de 1,8 mil símbolos confederados nos EUA, dos quais 776 são monumentos. Dez dos líderes dos estados confederados continuam sendo homenageados em nomes de prédios, placas, nomes de escolas ou ruas.

Do outro lado do Atlântico, um dos atos mais simbólicos ocorreu ainda na semana passada quando, na Bélgica, um busto do rei Leopoldo II foi vandalizado. A cabeça do monarca acabou com um saco branco, simbolizando o que era colocado na cabeça dos escravos.

Nos dias seguintes, outras estátuas relativas ao rei foram incendiadas, tingidas de cor vermelha e frases como "Não consigo respirar", numa referência ao clamor de George Floyd. 45 mil assinaturas ainda foram submetidas à câmara de vereadores local pedindo que todas as estátuas fossem retiradas. Algumas delas já começaram a ser retiradas.

Leopoldo é considerado como sendo responsável pela morte de milhares de pessoas na ex-colônia identificada então como Congo Belga, a atual República Democrática do Congo.

Algo similar ocorreu em Berlim, onde a "Mohrenstrasse" foi tomada por cores e transformada em"George Floyd-Strasse". O termo Mohr seria uma referência aos negros.

Já nos últimos anos, três ruas em Berlim — a Petersallee, Nachtigalplatz e Lüderitzstrasse — foram alvos de polêmicas por trazer nomes que remetiam ao racismo. Em 2016, as autoridades locais autorizaram a mudança de nomes. Mas 500 residentes abriram um processo para impedir a mudança.

A Alemanha manteve um império colonial em regiões como Namíbia, Camarões, Togo, Tanzânia e Quênia. Um dos principais personagens alemães na África foi Carl Peters. Em 1880, ele fundou a Companhia Alemã para o Leste Africano e comprou terras no que seria hoje Tanzânia, Ruanda e Burundi.

Peters seria então nomeado comissário imperial para a região. Mas, na língua local, passou a ser chamado de "mkono wa damu". Ou simplesmente: "o homem com sangue nas mãos". Sua brutalidade levaria Berlim a retirá-lo da região. Mas Peters seria reabilitado pelos nazistas, que o dariam uma rua com seu nome em 1939.

Em 2018, tal trecho de Berlim mudaria de nome. Petersallee passaria a ser Anna-Mungunda-Allee e Maji-Maji-Allee, personalidades centrais da rebelião anti-imperialista na África.

Meses depois, deputados da extrema-direita Alternativa para Alemanha convidaram o historiador norte-americano Bruce Gilley para ir a Berlim dar uma palestra para defender o colonialismo alemão. Gilley, autor do controverso artigo "O Caso do Colonialismo", argumentava que o Reich alemão era mais benevolente do que outros.

A Câmara Municipal de Glasgow está também revendo os nomes das ruas e edifícios depois de uma petição pública que solicitou que nomes de pessoas responsáveis pelo tráfico negreiro sejam retirados.

Uma das ruas mais conhecidas, a Avenida Buchanan, é uma referência ao fornecedor de tabaco Andrew Buchanan, cuja família tinha escravos atuando em uma plantação na Virgínia. A Avenida Oswald é uma referência a James Oswald, proprietário de uma plantação na América e no Caribe, além de ser fornecedor de escravos.

Protestos em Bristol, na Inglaterra, usaram cordas para derrubar uma estátua de Edward Colston, um comerciante que deve sua fortuna ao tráfico de escravos no final dos anos 1600. A sua estátua estava na cidade desde 1895. São ainda várias ruas e escolas que levam seu nome.

Uma petição pede que a estátua seja substituída por uma de Paul Stephenson, um ativista que liderou uma campanha pela igualdade racial em Bristol nos anos 60.

O prefeito de Londres, Sadiq Khan, admitiu que estátuas de personalidades imperialistas seriam removidas das ruas, depois do que ocorreu com Colston. Os monumentos, segundo ele, precisam revelar a diversidade da cidade.

Imediatamente, a estátua de outro proprietário de escravos, Robert Milligan, foi retirada das ruas. Mas os manifestantes querem mais. Um movimento ganhou forma e passou a ser chamar "Derrubem os Racistas". O grupo elaborou agora uma lista de mais de 50 estátuas espalhadas pelo Reino Unido e que gostariam que fossem eliminadas.

Elas incluem homenagens a personalidades como James Cook, Cecil Rhodes, Charles James Napier, Francis Drake, Robert Blake, Horatio Nelson e William Gladstone.

"É uma verdade desconfortável que nossa nação e cidade devem grande parte de sua riqueza ao seu papel no tráfico de escravos e, embora isso se reflita em nosso domínio público, a contribuição de muitas de nossas comunidades para a vida em nossa capital tem sido deliberadamente ignorada", disse Khan.