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Jamil Chade

Denúncia na ONU: Pandemia aprofunda política genocida do governo em prisões

Presídios do Ceará sofrem com superlotação carcerária e estrutura deficitária - Divulgação/OAB-CE
Presídios do Ceará sofrem com superlotação carcerária e estrutura deficitária Imagem: Divulgação/OAB-CE

Colunista do UOL

23/06/2020 04h00

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A ONU e a OEA receberam uma denúncia contra o governo de Jair Bolsonaro, acusado de estar negligenciando a situação da pandemia nas prisões e de liderar uma "política genocida". Para mais de 200 entidades que assinam a queixa formal, o alastramento da pandemia está acelerando o colapso nas prisões brasileiras.

Os documentos foram submetidos para diferentes órgãos dentro das instituições e para a alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet. Em Genebra, a ONU já lida com a situação das prisões e considera o cenário como grave em diferentes partes do mundo, inclusive no Brasil.

De acordo com o documento, existe um temor de que a covid-19 seja o início da prática de desaparecimentos forçados. Ou seja, de mortes sem qualquer responsabilização.

"Ainda não estamos no ápice da curva de contaminação, não obstante, os diversos casos subnotificados e a ausência de transparência quanto à contaminação e causa mortis no sistema, nos trazem extrema preocupação quanto ao início da prática de desaparecimento forçado de modo massivo no sistema prisional brasileiro", alertam as entidades.

A queixa foi elaborada pela Agenda Nacional pelo Desencarceramento, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, Justiça Global, Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a Conectas Direitos Humanos. O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, abalado por decisões do governo Bolsonaro para tentar o esvaziar, e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais também fizeram parte da iniciativa. Também participou da queixa o Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro.

Apoiam ainda a denúncia entidades como a Pastoral Carcerária Nacional - CNBB, a Associação Evangélica Piauiense, o Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social, Comissão de Direito Penal da OAB, o Grupo Tortura Nunca Mais e o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares.

Uma denúncia na ONU não resulta numa sanção e nem em qualquer tipo de embargos legais ou comerciais. Mas o caso aprofunda a crise de legitimidade internacional do governo e promete ampliar a pressão das entidades multilaterais contra o governo. Não é por acaso que, nesta semana, o Itamaraty se aliou aos chineses, cubanos, venezuelanos e iranianos para votar uma resolução para esvaziar a capacidade da ONU em monitorar violações de direitos humanos. ??

Segundo a queixa submetida à ONU, existe um "agravamento do colapso nas prisões brasileiras em razão do acelerado alastramento da pandemia do vírus COVID-19". O grupo pede que a entidade "questione o estado brasileiro sobre a ausência de medidas emergenciais para controlar o crescimento exponencial do número de mortes no cárcere, pelas razões que viemos a apresentar, assim como um posicionamento público no mesmo sentido".

"Com as medidas de incomunicabilidade sistemática e com a falta de uma política séria e responsável de desencarceramento em massa, o Estado brasileiro aprofunda sua política colonial e genocida expondo quase 1 milhão de pessoas ao iminente dano irreparável à integridade física e à vida", alertaram.

"Esse cenário aprofunda a angustiante sensação de espera pela morte entre presos e seus familiares, prática de tortura e tratamento degradante, desumano e cruel", disseram.

"Agrava-se este cenário pela situação de fome em espaços nos quais estão 20 pessoas, mesmo que somente caibam quatro, em uma encruzilhada onde o preso pode morrer de fome, de tuberculose, de COVID-19 agravado pela debilidade física característica das pessoas presas em todo território nacional", apontam.

Na avaliação das entidades, o Estado brasileiro precisa assumir a gravidade da situação, "reconhecer a humanidade das pessoas que estão presas e passar a tomar medidas efetivas de enfrentamento ao COVID-19".

"Cabe ao Estado brasileiro garantir vidas e a ele é proibido decretar generalizada e sistematicamente sentenças de morte cruéis de quase um milhão de pessoas, marcadas pela invisibilidade da dor dos seus familiares e pelo descumprimento de seu direito à verdade e memória", dizem.

Mortalidade

De acordo com a denúncia, as taxas de mortalidade por COVID-19 nas prisões, apesar da baixa notificação, já são maiores que as taxas do extra muros. Elas seriam cinco vezes maior que no restante da população, apesar da baixíssima testagem, que foi realizada apenas em 0,1% da população prisional.

"A situação se torna ainda mais crítica com a constatação do Departamento Penitenciário Nacional de que dentro dos muros do cárcere a letalidade do COVID-19 é cinco vezes a daquela que aflige a sociedade. Além disso, a primeira morte dentro dos estabelecimentos prisionais ocorreu nove dias após o primeiro caso confirmado, enquanto que na população em geral ocorreu 20 dias após. Ou seja, dentro do cárcere as pessoas morrem quase duas vezes mais rápido do que fora", dizem as entidades.

"Ressalte-se que as informações sobre óbitos e contaminações na sociedade em geral, e fatalmente nos presídios, seguem como alvo principal do obscurantismo e negacionismo que marca a atuação do presidente Jair Messias Bolsonaro e seu governo. Que, como é de conhecimento notório, nega a gravidade da pandemia", dizem os grupos.

"É fundamental que medidas urgentes sejam adotadas para reversão deste quadro, principalmente em um país que desaparecimento forçado em presídios faz parte da realidade local, sob pena de ser impossível a recuperação de memória sobre as vítimas desaparecidas em penitenciárias durante a pandemia de COVID-19", apelam.

De acordo com a denúncia, a ausência de medidas para impedir o alastramento descontrolado do COVID-19 dentro das prisões já está culminando pna morte das pessoas privadas de liberdade. Houve, segundo ele, um aumento de 800% nas taxas de contaminação nos presídios desde maio, chegando a mais de 2.200 casos no início de junho.

Negligência e rebeliões

Os dados levantados na queixa evidenciam a dimensão da negligência do estado no que se refere à situação das prisões. Em média, 31% das unidades não possuem nenhuma cobertura de saúde, segundo dados produzidos pelo Conselho Nacional do Ministério Público. No nordeste, 42,7% das prisões estão nesta situação.

Doenças cujo tratamento não é de alta complexidade fora das unidades, como tuberculose, são ainda um problema grave nos presídios, inclusive responsáveis por muitos óbitos. "Quando há presença de médicos, estes muitas vezes vão somente duas vezes por semana", alertam.

"Existe, em média um médico para cada 687 presos, índice inferior ao acesso da população extramuros que possui um médico para 460. Assim, em torno 456 prisões não têm assistência médica", apontam.

Não por acaso, a pandemia, superlotação e doenças têm intensificado rebeliões em Goiás, Pernambuco, São Paulo e Amazonas. "Essas quatro rebeliões possuem características que desnudam a extrema fragilidade institucional das prisões brasileiras", diz a queixa à ONU.

"Doenças, dores e medo da morte sem assistência são as razões que levaram a eclodir tais protestos. Destaque-se que tais levantes da população prisional normalmente são alvo de dura repressão das forças de segurança, causando especial preocupação quanto à violações a posteriori durante o período de incomunicabilidade, tendo em vista que não tem sido possível ter notícias precisas sobre o volume das possíveis práticas de tortura e maus tratos empregadas por estas instituições quando da contenção dos motins", aponta.

A queixa conclui com um alerta dramático. "O Estado brasileiro está negligenciando a proporção do colapso do sistema prisional com a chegada do COVID-19", apontam.

"Além de não tomar providências para conter o acirramento das violações de direito no cárcere, o Estado brasileiro tem agido sistematicamente para encobri-las. Desde 2019, tem atuado para desmontar o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, partindo do Decreto n. 9831/19, que retirou a remuneração dos peritos e peritas que compõem o Órgão", dizem.

"Mais recentemente publicou edital de seleção sem a previsão de remuneração, o que descumpre o OPCAT (Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos, ou Degradantes ) e ameaça a continuidade do Órgão que, por prerrogativa legal, tem autonomia de ingresso em qualquer unidade de privação de liberdade", alertam.

Poder de morte e política genocida

As instituições não medem palavras para descrever o papel do estado diante da crise. "Em uma pandemia como a que vivemos, de um vírus recentemente descoberto que tem como medidas comprovadas de prevenção a higiene pessoal, a limpeza dos ambientes e o distanciamento social, manter pessoas privadas de liberdade amontoadas em um espaço fechado e insalubre é exercer um poder de morte que se concretiza em uma equação brutal", afirmam.

"Envolve desigualdades sociais que levam, desproporcional e seletivamente, pessoas negras para as prisões, com destaque para as mulheres, que em alguns estados chegam a 99% da população feminina encarcerada", indicam.

"A crise sanitária estrutural do sistema prisional brasileiro se agudiza pela superlotação, pelo reduzido número de equipes de saúde, pela baixa qualidade nutricional da alimentação, pela significativa presença de doenças infectocontagiosas, pelo baixo efetivo profissional nas diversas áreas de segurança e assistência social, que transformam o cárcere em uma espécie de panela de pressão", afirmam.

"Este cenário, somado à incomunicabilidade sistemática, ao isolamento que potencializa a tortura e ao incremento militar, seja pela lógica de atuação das forças táticas ou pelo consumo de armamentos e tecnologias menos letais, demonstra como o Estado brasileiro aprofunda diariamente sua política colonial e genocida, expondo quase 1 milhão de pessoas ao iminente dano irreparável à integridade física e à vida", denunciam.?

"Potencializado pela pandemia, o sentimento angustiante das pessoas privadas de liberdade e dos seus familiares de que foi decretada a sentença de morte dos seus entes queridos, pode se tornar uma terrível realidade caso o Estado brasileiro não implemente a nível nacional uma ação de enfrentamento ao COVID-19 nas prisões", afirmam.

As entidades ainda concluem: "o Estado brasileiro deve proteger vidas e a ele é proibido decretar generalizada e sistematicamente a morte cruel das pessoas privadas de liberdade, marcadas pelo desrespeito de seu direito à saúde, ao acesso à justiça e à verdade e memória".

Pedido de investigação e de transparência

As entidades apresentaram uma lista de seis pedidos para a ONU e OEA. A esperança é de que, com a ação internacional, o governo brasileiro seja responsabilizado pela crise.

Eis o apelo das entidades:

que sejam emitidos, caso julgar conveniente e oportuno, um posicionamento público e/ou recomendações gerais ou específicas ao Brasil sobre a grave situação das pessoas privadas de liberdade mantidas no cárcere durante a pandemia;

(ii) que seja realizada uma reunião da sociedade civil brasileira com a Sra. Michele Bachelet, Sr. Niky Fabiancic, Sr. Dainus Puras e Sr. Nils Melzer para aprofundar o diálogo sobre a situação dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade no Brasil;

(iii) que seja recomendado ao Poder Judiciário brasileiro maior atenção à gravidade da situação do sistema carcerário nacional, apreciando com respeito às garantias fundamentais, como os direitos à saúde, ao acesso à justiça e, especialmente, à vida, os pedidos de liberdade apresentados, conforme as determinações da Organização Mundial de Saúde (OMS), dos organismos internacionais e da Recomendação no 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), priorizando medidas desencarceradoras;

(iv) que seja recomendado ao Estado brasileiro a implementação de perícia independente em caso de mortes de pessoas privadas de liberdade, nos termos do Protocolo de Minnesota;

(v) que seja recomendado ao Estado brasileiro a transparência de fluxos e políticas públicas para atenção à saúde adotadas no âmbito da administração prisional durante a pandemia e do número de casos suspeitos, confirmados e obituados por COVID-19, assim como testes aplicados;

(vi) que seja recomendado ao Estado brasileiro o fim da imposição de regime de incomunicabilidade nas unidades prisionais.