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Jamil Chade

Na ONU, Itamaraty omite mortes e diz que país vive "democracia vibrante"

6.mar.2019 - Chefe de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), Michelle Bachelet - Denis Balibouse/Reuters
6.mar.2019 - Chefe de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), Michelle Bachelet Imagem: Denis Balibouse/Reuters

Colunista do UOL

02/07/2020 05h52

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Resumo da notícia

  • Discurso na ONU foi reação às críticas que governo Bolsonaro recebeu nos últimos dias por sua resposta à pandemia
  • O governo da Suíça, indígenas e ongs também denunciaram a situação no país

Num discurso realizado nesta quinta-feira no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Itamaraty omitiu a dimensão da pandemia no Brasil, que já matou mais de 60 mil pessoas e colocou o país no epicentro mundial da crise. O governo ainda rebateu críticas de gestos autoritários do Planalto, insistindo que o país vive "democracia vibrante".

O governo insistiu ainda que todas as instituições públicas estão agindo para lidar com a covid-19, que existe uma estratégia e que até os grupos mais vulneráveis estão sendo atendidos, entre eles os indígenas.

Um dos recados ainda do país se referia à situação política. De acordo com o Itamaraty, a resposta à crise está sendo conduzida "em linha com liberdade de expressão, incluindo da imprensa, e acesso à informação". Sem citar as dezenas de vezes que Bolsonaro minimizou pandemia, o governo indicou que "há um esforço para conscientizar a população", assim como ações visando indígenas e outros grupos.

Num dos trechos de sua intervenção, o Itamaraty ainda apontou para o clima político do país, negando qualquer crise.

"Brasil tenta lidar com pandemia e aspirações de seu povo com uma democracia vibrante, poderes totalmente independentes atuando dentro do estado de direito, debate político aberto e com imprensa e sociedade civil livre e diversa", indicou.

A versão do Itamaraty é rejeitada por ongs e mesmo pela ONU, que acusa o governo de os ignorar. Instantes depois de o governo fazer seu discurso, entidades alertaram: "o Brasil está à deriva".

O discurso do governo brasileiro foi uma resposta à alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, que, nesta semana, tinha criticado o comportamento do governo no Brasil de negar a gravidade da covid-19 e alerta que tal postura está ampliando o impacto da crise.

Em sua avaliação sobre como o mundo está reagindo ao vírus, a chilena citou especificamente o Brasil entre os governos negacionistas, ao lado de Burundi, Nicaragua, Tanzânia e Estados Unidos "Preocupa-me que declarações que negam a realidade do contágio viral, e a crescente polarização sobre questões-chave, possam intensificar a gravidade da pandemia, minando os esforços para conter sua propagação e fortalecer os sistemas de saúde", indicou Bachelet.

Ao longo dos últimos meses, o governo de Jair Bolsonaro insistiu em minimizar o vírus, criticar a "histeria" em relação à doença e promover tratamentos sem comprovação de resultados.

Hoje, com mais de 60 mil mortos e 1,4 milhão de casos, o Brasil é considerado como um dos principais epicentros da pandemia. Na comunidade internacional, porém, a reação do governo brasileiro é alvo de intensa preocupação e, na avaliação da OMS, não há um sinal de quando a pandemia atingiria seu pico. Bachelet ainda alertou para a situação dos indígenas e da população afrodescendente, ainda que não tinha citado especificamente os países.

Na delegação brasileira, porém, o tom usado foi outro. "O Brasil leva à sério sua resposta à covid-19", disse Maria Nazareth Farani Azevedo, embaixadora do Brasil na ONU.

"O direito à saúde e o SUS, ambos parte da Constituição, são as bases de nosso trabalho. Todas as instituições competentes no Brasil estão assumindo ações para o benefício de toda a sociedade e em especial aos grupos vulneráveis, como mulheres e indígenas, afro-descendentes, migrantes, refugiados, pessoas com deficiências e idosos", disse.

De acordo com a diplomata, ela tem regularmente atualizado a alta comissária da ONU de uma maneira regular sobre a estratégia do Brasil para lidar com o impacto econômico e social da pandemia. Segundo ela, essa resposta envolve ajuda emergencial para trabalhadores, apoio para empresas e ajuda alimentar para os mais vulneráveis. A diplomata ainda alertou que a seletividade no acesso a uma eventual vacina não será a resposta desejada pelo mundo.

Os dados, porém, desmentem a embaixadora. A taxa de morte de indígenas tem sido superior ao da média dos brasileiros e a população afrodescendente está sendo impactada de maneira desproporcional. O fechamento das fronteiras tem atingido refugiados e o país registra uma das maiores perdas de horas de trabalho no mundo entre sua mão-de-obra, o que revela a dimensão da crise.

Farani Azevedo agradou Bolsonaro e chegou a receber um telefonema do presidente depois que saiu em defesa do governo diante de críticas realizadas por Jean Wyllys na ONU, em 2019.

No mês passado, a mesma embaixadora criticou relatores das Nações Unidas que tinham questionado a resposta do Brasil no caso da pandemia. Nos bastidores, a mesma embaixadora tem enviado cartas à cúpula de diferentes organismos para pressionar e dar sua versão da resposta do Brasil à pandemia.

Brasil à deriva

Minutos depois, o Brasil de Bolsonaro foi alvo de duras críticas. Entidades como Conectas Direitos Humanos e a Comissão Arns apresentaram denúncias por conta da resposta do país à pandemia. Falando em nome das duas organizações, Gustavo Huppes alertou que "a pandemia expôs a desigualdade abissal no país - afetando duramente os mais vulneráveis de nossa sociedade".

"A resposta fracassada do governo federal só está piorando a situação", disse. "O presidente Bolsonaro chamou a COVID-19 de "gripezinha" e desencorajou a população a seguir as medidas de quarentena adotadas pelas autoridades locais", afirmou.

"Quando o Brasil chegou a cinco mil mortes, a resposta de Bolsonaro foi "e daí?". Agora, com 1,35 milhões de casos, quase 58 mil mortes, mais de 40 dias sem um Ministro da Saúde permanente, o Brasil está à deriva nesta crise sanitária e sanitária", afirmou.

Para as entidades, porém, o Brasil "também enfrenta a sua maior crise política desde a redemocratização".

"Manifestações antidemocráticas estão acontecendo no país e pedem o fechamento do Congresso e da Suprema Corte, assim como uma intervenção militar com Bolsonaro no poder - todos pedidos inconstitucionais que representam uma ameaça à nossa democracia", alertou. "O próprio presidente Bolsonaro participou de algumas dessas manifestações", insistiu.

Num apelo, as organizações pediram ao governo brasileiro que "responda à pandemia guiado pela mais absoluta transparência, apoiado pela melhor ciência e condicionado pelos princípios fundamentais da dignidade humana e da preservação da vida". "Isto inclui o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Gostaríamos também de chamar a atenção da Alta Comissária e deste Conselho para a atual crise política e de saúde em curso no país e de acompanhar de perto a situação dos direitos humanos no Brasil", completou.

Suíços e indígena de 15 anos denunciam

Nos últimos dias, quem também criticou o Brasil foi o governo da Suíça que colocou o país entre governos que têm atuado para atacar jornalistas e a liberdade de imprensa.

O governo também foi alvo de uma crítica por parte de um representante de grupos indígenas. O adolescente Roger Ferreira Alegre, da Comunidade Amambaí no Mato Grosso do Sul, foi um dos que tomou a palavra na reunião do Conselho de Direitos Humanos para alertar sobre a crise no país relacionado aos povos indígenas e como o fracasso na resposta à pandemia aprofundou a situação.

"Para as crianças indígenas, a proteção do território é a forma de garantir nosso estilo de vida tradicional, nossa sobrevivência, nosso desenvolvimento como seres humanos e o exercício de todos os nossos direitos humanos", disse.

"Infelizmente, no contexto Guarani, existe uma dívida histórica por parte do governo brasileiro para demarcar nosso território. O governo Bolsonaro paralisou o processo de demarcação no país", acusou.

"Como consequência, vivemos em uma situação de insegurança, com riscos para a saúde, a alimentação e a integridade física e mental. Nossas crianças sofrem altos índices de desnutrição", disse.

Ele ainda alertou sobre a questão dos agrotóxicos. "No ano passado, 15 crianças entre 6 e 9 anos de idade que estavam tomando café da manhã na escola indígena da aldeia de Guyraroká foram cobertas por uma nuvem de agrotóxicos, causando vários danos à sua saúde", disse.

"Somos mais de 2000 famílias, cujos membros são 60% crianças, sobrevivendo em barracas de plástico sem acesso à água, saúde, educação, alimentação, em uma verdadeira crise humanitária", apontou.

O indígena, porém, alertou como a pandemia tem aprofundado a crise. "A covid-19 nos afetou de uma forma aguda. Falta comida em nossos acampamentos. Muitos de nossos pais e parentes adultos estavam contaminados trabalhando nas empresas frigoríficas da JBS", denunciou.

"A principal medida para proteger os direitos das crianças indígenas é garantir a demarcação de nossos territórios, completou.