Topo

Jamil Chade

Hanseníase: ONU pressiona Brasil a reparar indivíduos separados de pais

Conselho de Direitos Humanos da ONU - Xinhua/Xu Jinquan
Conselho de Direitos Humanos da ONU Imagem: Xinhua/Xu Jinquan

Colunista do UOL

06/07/2020 13h04

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O Brasil é pressionado a criar um programa de reparação aos indivíduos que, quando crianças foram foram separadas de seus pais, como forma de lidar com a hanseníase.

O pedido foi feito nesta segunda-feira pela relatora especial da ONU sobre eliminação da discriminação contra pessoas afetadas pela hanseníase, Alice Cruz. Ela realizou uma missão ao Brasil em 2019 e, hoje, apresentou suas recomendações ao governo diante do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra.

A prática de separar essas crianças foi adotada no Brasil até 1986. Mas a reintegração não foi imediata ainda existem cerca de 30 colônias com residentes da geração de pessoas que foram segregadas como resultado da política do Estado, assim como da segunda e terceira gerações.

"Além disso, em alguns desses lugares, bairros inteiros se estabeleceram informalmente ao redor de antigas colônias", disse a relatora, em seu informe.

"As políticas de segregação do passado continuam a ter um impacto na vida das pessoas afetadas pela doença de Hansen e de seus familiares", apontou a relatora, denunciando o estigma e violação dos direitos civis e políticos das pessoas afetadas pela hanseníase. "As violações são de natureza permanente, pois se perpetuam na vida dessas pessoas e de seus filhos que sofrem infinitos traumas e restrições ao gozo de seus direitos sociais, econômicos e culturais", disse.

Segundo ela, em reuniões, representantes das vítimas denunciaram em alguns desses centros um "nível alarmante de negligência institucional, com altos níveis de pobreza, acesso limitado ou inexistente aos cuidados de saúde, dispositivos ou materiais de assistência, ou a serviços e recursos básicos, mas também casos de recaídas e transmissão contínua".

"Há relatos de que aproximadamente 16.000 crianças foram separadas de seus pais, que foram afetadas pela doença de Hansen, como resultado da política de segregação; elas foram enviadas para instituições entre os anos 1920 e 1980", explicou a relatora.

"Há também relatos de adoções ilegais e até mesmo de execuções", alertou. "Dados precisos sobre essas crianças ainda não estão disponíveis e o paradeiro de muitas delas permanece desconhecido. Além disso, essas pessoas não têm acesso a seus arquivos e registros médicos durante o período em que estiveram nos céus preventivos", denunciou.

"Essas crianças cresceram sem nenhum contato com seus pais biológicos e muitas delas sofreram prisão, tratamento desumano e tortura nos grupos de prevenção, como trabalho forçado, abuso sexual e outras formas de violência física e psicológica. Como resultado dessas violações, muitas dessas pessoas não têm hoje acesso a um padrão de vida adequado e autonomia econômica, e muitas sofrem de distúrbios e deficiências psicossociais que prejudicam sua reabilitação e inclusão na sociedade", alertou.

Para a relatora, portanto, há uma "necessidade urgente de um programa complexo de reparação que engloba reparações materiais e simbólicas, garantias de não recorrência, um processo de memória e direitos de acesso à informação e reabilitação, dado o envelhecimento desta população".

O apelo da relatora foi ecoado pelas entidades da sociedade civil. Numa declaração conjunta, o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase - MORHAN, Coletivo RPU Brasil, Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH), Gestos e Centro de Educação e Assessoria Popular (CEAP) criticaram o governo e pediram que o estado brasileiro seguisse a recomendação de Alice Cruz.

"O Brasil é o primeiro lugar de incidência da doença de Hansen no mundo e onde no passado muitas crianças foram separadas de seus pais durante a política de segregação", disseram as entidades.

"Como evidenciado no relatório, esta doença está associada à desigualdade sistêmica e à discriminação, ambas agravadas com a Covid-19. Esta pandemia tem mostrado, com provas evidentes, o despreparo sem precedentes do atual governo, o que fez com que o vírus se espalhasse fora de controle", denunciaram.

"Como foi apontado no relatório, nosso país enfrenta enormes desafios em relação à pobreza, ao saneamento e a outros direitos humanos. Os dados mostram que estes direitos têm sofrido retrocessos nos últimos cinco anos. As medidas de austeridade, como a emenda constitucional noventa e cinco, colocam um teto rigoroso nos gastos do governo, cortando até trinta bilhões de reais em investimentos na saúde em três anos", indicaram.

"Diante de todos estes desafios, mas tendo em profunda consideração a relevância do cenário nacional atual, gostaríamos de recomendar ao Estado brasileiro que cumprisse a recomendação do Relator de reparar urgentemente os indivíduos que, quando crianças, foram separados de seus pais afetados pela doença de Hansen e segregados da sociedade", completaram as ongs.

Utilização

O governo brasileiro usou a visita da relatora para mostrar a abertura do país aos especialistas da ONU. De acordo com o Itamaraty, a relatora esteve com a sociedade civil e governo e garantiu que a prioridade de Brasília é lutar contra o estigma e discriminação. De acordo com o governo, existe um pensão compensatória para pessoas isoladas no passado.

O trabalho do governo, porém, não será simples. A relatora da ONU não deixou de destacar alguns avanços no combate à discriminação e no tratamento de pessoas afetadas pela hanseníase em governos anteriores. Mas faz alertas claros sobre a situação atual. Alguns dos centros identificados pela relatora estariam marcados pela "negligência alarmante".

"Durante as últimas décadas do século 20, o Brasil liderou a eliminação da discriminação contra as pessoas afetadas pela hanseníase e seus familiares. Fundamental para esse papel pioneiro tem sido a Constituição baseada em direitos, o alto nível de conhecimento entre os pesquisadores de saúde do país e uma organização robusta de pessoas afetadas pela doença, o que atesta sua resiliência e engajamento cívico nos assuntos públicos", escreveu a relatora.

"A estrutura normativa e institucional brasileira está qualificada para proteger, promover e cumprir os direitos das pessoas afetadas e de seus familiares. De especial relevância são as leis que combatem a linguagem discriminatória e compensam danos passados com uma medida permanente e especial baseada na reparação material", indicou.

"Não obstante a igualdade jurídica, a discriminação de fato perdura em práticas institucionalizadas e relações sociais interpessoais", alertou a relatora.

"As barreiras estruturais atuam como poderosos determinantes sociais da incidência da doença no país, acentuada pela autonomia regional e local na administração de recursos neste país quase continental e altamente diversificado", indicou.

"Mecanismos que podem garantir a prestação de contas, canais acessíveis para o tratamento de queixas às autoridades competentes, acesso efetivo à justiça e fortalecimento dos órgãos colegiados participativos já existentes são fundamentais para garantir acesso equitativo à saúde, proteção social e direitos inter-relacionados", completou.

Redução de espaço cívico

O relatório da ONU fez ainda um alerta sobre a decisão do governo de Jair Bolsonaro de restringir o trabalho de conselhos criados para servir de canal para a participação da sociedade civil na formulação e debate de políticas no país.

A relatora teceu críticas ao Decreto Presidencial nº 9759/2019. Publicado em abril de 2019, o instrumento estabelece uma mudança na existência dos conselhos colegiados, inclusive extinguindo alguns deles. Naquele momento, a ação do Planalto gerou duras críticas por parte de instituições e ativistas, além de ser interpretado como um ato de restrição da participação da sociedade civil no debate de políticas públicas. Tradicionalmente, é por meio desses órgãos que a sociedade civil pode apresentar propostas e debater com o governo ações em diferentes áreas sociais, como infância, direitos humanos, tortura e muitas outras.

Segundo a relatora, o governo "regulamenta e limita os conselhos, que são órgãos colegiados públicos federais, e restringe o exercício das liberdades fundamentais e direitos, como a participação na tomada de decisões, monitoramento e prestação de contas".

"Tais conselhos têm sido críticos para garantir os direitos civis e políticos consagrados no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil é parte, e também abriram caminho para a participação em assuntos públicos de grupos marginalizados, como pessoas afetadas pela hanseníase", disse.

"A eliminação desses mecanismos-chave reforçaria a exclusão desses indivíduos, constituindo um grande revés para seu gozo de direitos sociais, econômicos e culturais, e um retrocesso no que diz respeito à aplicação dos direitos humanos internacionais fundamentais", afirma a relatora.

Omissão

Numa resposta submetida pelo governo brasileiro ainda em abril, o país esclarece que o "Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos observa que foram mantidos os conselhos criados por lei, notadamente os de seu Ministério, bem como outros órgãos colegiados, tais como o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência".

A resposta, porém, omite a batalha legal que tem ocorrido nos bastidores. O Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência, por exemplo, foi alvo de uma tentativa do governo de modificar os integrantes do órgão, o que levou o Conselho a entrar com uma ação na AGU. Em janeiro de 2020, o parecer da entidade apontou que, de fato, os mandatos dos conselheiros deveriam ser mantidos e não poderiam ser alterados.

Outros conselhos com temas relacionados aos direitos humanos ainda estão funcionando graças a medidas judiciais, enquanto o governo passou a intervir diretamente na escolha de seus membros e até selecionar a presidência desses órgãos.