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Jamil Chade

Brasil se isola no Ocidente e silencia diante de propostas contra mulheres

Damares Alves no Conselho de Direitos Humanos da ONU - Fabrice Coffrini / AFP
Damares Alves no Conselho de Direitos Humanos da ONU Imagem: Fabrice Coffrini / AFP

Colunista do UOL

17/07/2020 07h01

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O governo de Jair Bolsonaro se isola entre os governos ocidentais e silencia diante de propostas na ONU para limitar os direitos das mulheres, inclusive o de impedir acesso à informação, direito à autonomia do corpo e vetar educação sexual.

Nesta sexta-feira, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou uma resolução patrocinada por mais de 70 países para defender o combate contra a discriminação. Apesar de se apresentar como um dos defensores da "civilização ocidental", o Brasil não foi um dos co-patrocinadores do texto, num assunto ganhou um local de prioridade na agenda da ONU, principalmente diante dos impactos da pandemia entre as mulheres.

O texto da resolução, liderado pelo México, cita a importância de acesso à educação sexual e direitos à saúde sexual, termos que são rejeitados pelo Brasil. Nas últimas semanas, a coluna revelou com exclusividade o mergulho ideológico do governo e como o Itamaraty tomou a palavra nas reuniões para pedir que tais referências fossem excluídas das resoluções. Um dos argumentos do governo brasileiro é de que tais menções poderiam dar uma abertura para o reconhecimento do papel do aborto, algo que os autores do texto rejeitam.

Outros governos ultraconservadores também tentaram enfraquecer o texto, liderados por sauditas, egípcios e russos.

Ao iniciar o debate nesta sexta-feira, o México explicou que tentou encontrar alternativas aos termos sob disputa. Mas mandou um recado claro: "os direitos de mulheres não são negociáveis". Para os latino-americanos, algumas das propostas representam "barreiras para limitar o direito das mulheres".

A resolução acabou sendo aprovada por consenso, ainda que com alguns governos se distanciando de trechos do projeto. Mas a polêmica e as votações se transferiram para o debate de emendas apresentadas por governos ultraconservadores.

Sob pressão de ongs e de campanhas nas redes sociais, o governo brasileiro optou por outra estratégia: a de deixar que o trabalho de enfraquecer o projeto fosse liderado por países árabes e pela Rússia.

Às vésperas da votação, emendas foram apresentadas por países com um histórico de opressão e discriminação contra as mulheres, entre eles o Egito, Rússia e Arábia Saudita.

Enquanto governos de direita ou de esquerda no Ocidente tomavam a palavra para criticar as emendas, a diplomacia do Brasil na ONU se mantinha em total silêncio durante a reunião, evitando sair em defesa do direito das mulheres.

Votação

Numa das emendas, os russos pediam que o texto não citasse o "direitos de mulheres e meninas", mas apenas o "direito de mulheres". "Estamos preocupados com o desenho irresponsável de dar direitos iguais para meninas e mulheres", disse a delegação russa. Segundo Moscou, isso deixa "as meninas vulneráveis".

Em resposta, o México insistiu que os direitos de meninas precisam ser garantidos e celebrados, citando o papel de liderança de Greta Thunberg e Malala. O Itamaraty, porém, não tomou a palavra.

Ao ser colocada à votação, a proposta russa foi vetada, com a totalidade do Ocidente votando contra. Apenas onze países, porém, se abstiveram, entre eles o Brasil. A mesma postura do Itamaraty foi tomada por Afeganistão, Líbia ou Sudão.

Acesso à educação sexual

Em outra emenda para enfraquecer o texto, o governo da Rússia pedia a eliminação do termo educação sexual da resolução. Ao explicar sua posição, Moscou reconheceu que a educação é "essencial" para prevenir discriminação. Mas se opõe à referência à educação sexual. "Isso pode minar a saúde (de mulheres). Não podemos concordar com isso", disse.

Para os russos, é a educação em direitos humanos, e não sexualidade, que deve ser a forma de prevenir discriminação entre grupos "cristãos".

Mais uma vez, a emenda foi derrubada, com todos os países ocidentais votando contra. Nove governos, porém, optaram pela abstenção, entre eles o Brasil, Mauritânia e Somália.

Enquanto governos se alternavam em pedir a palavra para defender mulheres e meninas, o Brasil se mantinha num completo silêncio.

Japão, México, Austrália e outros governos tomaram a palavra para criticar as emendas. A Alemanha, em nome de toda a Europa, deixou claro sua oposição.

O Uruguai, por exemplo, insistiu que o termo é recomendado por órgãos internacionais e lembra que o acesso à educação sexual tem impacto no bem-estar de mulheres e meninas, inclusive para impedir a "perpetuação da violência". "É inaceitável retirar esse trecho da resolução" disse a delegação de Montevideu. Para os sul-americanos, países que apoiam essa emenda são "arcaicos e fora da realidade".

Acesso à informação

No mesmo sentido da proposta russa, os sauditas apresentaram uma emenda para retirar da resolução o direito à "informação e serviços sobre saúde sexual e reprodutivas" em meio à pandemia da covid-19.

"É inapropriado, diante da gama ampla de impactos de saúde causados pela pandemia", afirmou a delegação saudita. Para os sauditas, isso viola a soberania dos estados em determinar o que é prioridade em termos de saúde. Riad ainda acusou os governos ocidentais de estarem "instrumentalizando" a pandemia para impôr suas agendas.

Assim como nas emendas anteriores, o Ocidente se uniu e conseguir impedir sua aprovação. Mas sete países optaram pela abstenção, entre eles o Brasil, Catar e Líbia. Durante o debate, os governos República Tcheca e Holanda tomaram a palavra para alertar que aprovar a proposta saudita "seria negar" um direito às meninas diante da pandemia. O Itamaraty, mais uma vez, se manteve em silêncio.

Direitos Reprodutivos

Um amplo debate também ocorreu depois que o Egito apresentou uma emenda para vetar o termo "direitos reprodutivos" do texto. "Não há direito a saúde sexual ou reprodutiva. Isso não pode ser aceito", disse a delegação do Cairo.

A proposta não passou, com todos os latino-americanos votando contra. Durante o debate, Peru, Áustria e Dinamarca criticaram a postura dos egípcios.

Mas o Brasil, de novo, optou pelo silêncio e por uma abstenção, ao lado de apenas sete países, entre eles o Afeganistão, Togo e Somália.

Autonomia do corpo

Por fim, uma emenda também foi submetida pelo Egito pedindo que o direito à saúde sexual e reprodutiva fosse retirado do texto original. Também era solicitado que o termo "direito à autonomia do corpo" fosse riscada da resolução. "Isso não existe no direito do direito internacional", alegou a delegação do Cairo.

A proposta foi duramente criticada por México, Dinamarca e até pelo governo de direita no Chile, que denunciou a tentativa de enfraquecer o texto. Santiago até lembrou que o termo é alvo de um consenso nos últimos 25 anos.

A emenda do Egito não passou. Mas o Brasil não se somou aos latino-americanos e nem aos ocidentais e optou, de novo, pela abstenção.

Ao final da votação, diversos governos tomaram a palavra para explicar suas posições.

O governo ultraconservador da Polônia foi um deles. Varsóvia insiste que combater a discriminação contra as mulheres é uma prioridade. Mas alerta que acesso à saúde sexual é de competência nacional e que o direito à autonomia do corpo não está definido no direito internacional.

Outro que explicou sua posição foi o Catar, que garante que o governo tem um compromisso com o direito de mulheres. Mas insistiu que não existem direitos reprodutivos e nem acesso à informação, ou mesmo o direito à autonomia do corpo. Paquistão, Nigéria, Bahrein e Sudão foram ainda obrigados a se distanciar de certos trechos do texto aprovado.

No caso do Brasil, a manobra diplomática do governo permitirá que o Itamaraty diga, oficialmente, que se somou ao consenso na resolução Mas, nos bastidores, tentou minar o texto e em público tampouco fez qualquer esforço para derrubar as propostas que tinham como objetivo enfraquecer os direitos de mulheres.

Reações e explicação

Horas depois, ao explicar sua posição, o governo brasileiro sequer enviou a embaixadora Maria Nazareth Farani Azevedo, chefe da delegação do Brasil na ONU. Segundo o Itamaraty, o texto aprovado contribui para a luta contra a discriminação contra mulheres e indicou que essa é "uma prioridade para o governo". O Itamaraty também elogiou o fato de que o texto lida com múltiplas formas de discriminação sofrida contra mulher e o papel central da família.

Mas o governo fez um alerta sobre a posição do país no que se refere à saúde sexual. "Em nenhum caso, o texto deve ser interpretado como um apoio ou incentivo ao aborto como método de planejamento familiar", disse o Itamaraty, que indicou que o governo aplica política de saúde sexual dentro das leis nacionais.

O governo, porém, não explicou sua abstenção nas emendas. E apenas indicou que continua comprometido em "promover os direitos de mulheres e meninas".

Para as entidades de direitos humanos, o posicionamento brasileiro é problemático. "Nas últimas semanas, o Brasil fez o trabalho sujo durante toda a negociação da resolução sobre discriminação de gênero apresentada pelo México", disse Camila Asano, diretora de programa da Conectas Direitos Humanos.

"Já na hora da votação hoje, o Itamaraty achou que poderia se esconder atrás da estratégia de abstenção. O problema é que abster-se não significa se esquivar de responsabilidade. O que o Brasil fez foi formalmente votar pela não rejeição das emendas nocivas apresentadas por Rússia, Egito e Arábia Saudita", disse.

"A diplomacia de Bolsonaro passou vexame duplo. Fracassou no seu objetivo de barrar a resolução e condenou o Brasil a ficar nos registros históricos da ONU como país que se absteve junto com Líbia, Afeganistão e Qatar em votações sobre direito das mulheres", completou Camila Asano.